LITERATURA: Dias de Guerrilha Urbana!
Autor: Samuel de JESUS.
Benjamim, naquela noite, não quis tomar um trago, pois se tomasse a caninha não leria o livro que estava disposto a ler. Para que o público saiba era À Sangue Frio de Truman Capote. Quem o visse diria que era quase indigente, embora seus olhos claros denotavam certa origem burguesa. Sabia falar o inglês, o francês e o espanhol até o alemão que é muito difícil, embora seus olhos fossem claros em seu rosto podiam ver as marcas da vida dura da rua.
Era chamado Lorde Favela, pois seus costumes aristocráticos e seu português correto causavam certa estranheza naquele meio estranho, mas era muito ligeiro, tinha o dom da adaptação. Quando estava envolvido com a bandidagem era possível vê-lo andando em alguma viela com um livro numa mão e na outra uma metralhadora. E o que lia? Muitas coisas, principalmente aqueles relacionados à política e guerra. Gostava dos clássicos como A Arte da Guerra do Maquiavel e o Sun Tzu que tem o mesmo nome, também O Behemot e o Leviatã de Thomas Hobbes, entre outros.
Esses conhecimentos foram utilizados para organizar as facções criminosas na favela. Ensinava aos líderes do tráfico na aplicação das estratégias. Por exemplo, a importância do apoio popular, o domínio estratégico no campo de atuação, conhecimentos fundamentais. Era a iminência parda dos traficantes, ninguém o conhecia, saiu fora antes disso acontecer.
Dormia durante o dia, acordava lá pelas quatro da tarde, pois era na noite que gostava de viver, pois se sentia o rei da noite. Observava todos os movimentos noturnos com seus andantes, prostitutas e cafetões e suas prostitutas, assim como os rapazes do michê, os drogados em busca de sempre mais e mais... Poderia andar livremente sem tumulto, conhecia os policiais e já tinha feito amizades. Perambulava e às vezes ficava conversando com os vigias e todos as personagens da madrugada.
Com os primeiros raios no horizonte voltava para o seu pardieiro, era uma casa velha e abandonada. A ausência de luz elétrica nem era sentida, pois durante a noite não estava lá e durante o dia passava dormindo. Podia fazer uma gambiarra, mas não sentia necessidade. Tinha se acostumado com a dureza da rua. Procurava ser mais duro que ela. O tempo lhe deu aspereza necessária para isso. Seus domínios eram à noite, principalmente as madrugadas e muita coisa que acontecia. Não gostava do dia com seu ritmo louco e onde as pessoas pareciam ser outras.
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Havia uma comunidade de moradores de rua. A união fazia-os suportar o frio da vida. O risco de ataques, a fome, falta de água, cobertores. Eles não tinham medo de assaltantes, mas os pitboys que tinham a mórbida diversão de ver morador de rua queimar ou testar a força que adquiriam na academia através de chutes ou safanões contra gente desprotegida e que já estava sendo nocauteada pela vida. Há tempos os boyzinhos sabiam que se agissem dessa forma no território de Benjamim teriam revanche, pois uma vez rapazinhos tentaram aloprar em seu território, mas depois tiveram amputados seus dedos mindinhos. O lorde Favela como era conhecido, tinha o respeito e admiração de uma ampla rede marginal e nunca brincava.
Benjamin tinha origem burguesa, era um empresário do setor de importações, uma crise seguida de um plano econômico o nocautearam. O fato é que já não estava mais a frente dos negócios. Com a morte do pai foi obrigado a assumir a coisa toda, Benjamim era fraco e hesitante nos negócios, não tinha a tenacidade do velho para os negócios, na verdade ele não viu nada daquilo crescer, passou quase toda a sua vida alheio a atividade econômica da família gastando toda grana como bem lhe aprouvesse.
Era somente ele e o pai, não tinha irmãos e nem mãe que já tinha falecido em um acidente de carro, o fato é que seu pai nunca se recuperou do trauma causado pela morte da mãe que tinha apelado para que ele reduzisse a velocidade que estava a 180km/h, mas não havia limites naqueles tempos, nem lei ou qualquer tipo de regra. Sentia-se o "dono do mundo" finalmente tinha chegado ao topo. Com a morte da mãe, a mansão ficou ainda mais vazia. O sentimento de ausência, a perda era como veneno que vai matando aos poucos, somando-se a isso a paralisia parcial do corpo fazia com que que precisasse de ajuda até para ir ao banheiro. Ao deixá-lo vivo com paralisia e remorso, Deus dava a ele o pior castigo que poderia dar a um homem, muito embora os movimentos que lhe restaram permitiam que colocasse o destilado no copo, um alívio imediato. Benjamin começou as suas experiências com todo o tipo de entorpecente. Primeiro, a maconha, logo em seguida a cocaine e finalmente o crack que o deixou no purgatório. De tanta amargura o velho sucumbiu, perdeu os sentidos dessa vida pensando que teria mais alívio do outro lado.
Um plano econômico e a crise trouxe a bancarrota. Na verdade as coisas não faziam sentido para ele desde o começo. Sentia-se envolvido em uma teia de compromissos. O mundo o conduzia, forçado pela vida. As vezes mudava de ideia, pois afinal era uma falta miserável consumir com tudo que o pai e o avô construíram, mas não estava preparado para assumir a vida.
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As drogas levaram Benjamim a ficar inconsciente, pois não se lembrava mesmo do que ocorreu de fato. Possui pensamentos esparsos, mas desencontrados. Era como se tivesse ficado desligado por anos dentro de uma caixa. Quando acordou tivera a certeza de que alguns anos haviam passado, viu-se em uma casa quase caindo, abandonada, fezes pelos cantos, lixo, colchões velhos, restos podres de comida. Estava só de chinelo, com uma blusa imunda e cheirando muito mal. Precisou procurar um espelho, do outro lado da rua, no boteco, tinha um espelho na parte de cima da parede e na posição inclinada para baixo. Todos que estavam no bar poderia se olhar no espelho. Foi ali que observou mais nitidamente sua imagem e não acreditou no que viu. Uma barba mofada e a pele escura de tanta sujeira, os cabelos desgrenhados, roupa suja e seu rosto pálido, esquálido. Imaginava ser outra pessoa, mas havia acordado depois de anos. Como se a droga perdesse o seu efeito.
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Jorge Sá é jornalista da famosa rede de televisão que fez uma extensa reportagem sobre os moradores de rua. Ouviu várias histórias, passou madrugadas trabalhando na reportagem. O lorde instruiu os moradores de rua a contarem os seus dramas, suas incertezas quanto à vida. Era necessário que a sociedade soubesse o que se passava. Para Lorde a questão era transformar a reportagem num manifesto popular. Tinha uma pré-condição, Lorde só possibilitaria a entrevista se pudesse colocar uma critica social sobre a produção capitalista e a sociedade de consumo das quais os moradores de rua eram vítimas, mas quando a reportagem foi ao ar só mostrou o drama daquela gente, mas como um espetáculo de horrores, como um produto para chamar a atenção para entreter pelo bizarro, assim como eram feito naqueles circos antigos que são mostravam anomalias, aquela reportagem era isso, um FREAK SHOW. Sentiram-se usados, pois era como se estivessem em uma novela, um drama no qual eles eram personagens reais, um BIG BROTHER da miséria daquele povo, mas essa observação que faz é o escritor, pois eles não assistiam novela, nem mesmo conheciam muito esse programa que mencionei. Na verdade quem tinha condições de perceber o abuso foi Lorde Favela pensava – Que jornalista sacana!
Jorginho Kallel se tornou prefeito quando o seu antecessor renunciou. Acelerou o processo de perseguição aos camelôs, tornou a vida dos MOTOBOYS mais dura, mandou a polícia combater a greve, inaugurou como obras pertencentes à sua administração os viadutos construídos durante o mandato de seu antecessor, colocou a Guarda Municipal em cima dos flanelinhas. O conjunto habitacional de sua administração com o tempo se tornaria um favelão, pois as famílias mandadas para aquele fim de mundo não arrumavam emprego e não tinham renda, mas deveriam pagar água, luz, esgoto, IPTU, asfaltamento, antes quando estavam na favela não precisavam pagar essas taxas. A água, luz, esgoto significava ter panela vazia, então optaram pelo que comer.
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Benjamin não sabia, mas tinha um grande patrimônio em seu nome. Era uma área constituída por um enorme galpão onde antes existia uma fábrica. A localização era privilegiadíssima. Fazia muito tempo que um grupo, interessado na construção de um shopping nesta área, queria comprar o patrimônio. O tamanho da área possibilitaria a construção paralela ao shopping de um posto de combustível e até mesmo um hipermercado, mas o negócio não poderia ser fechado, pois o dono não tinha sido encontrado, era o nosso Benjamin que já tinha se livrado das drogas. Seu sangue já estava puro. O prefeito já tinha prometido aos cidadãos daquela área da cidade que a construção poderia começar em breve. Isso era importante, pois as casas naquela área seriam valorizadas, mas quanto mais o tempo passava a posição do prefeito Jorginho ia ficando cada vez mais delicada. O fato era de que as eleições estavam próximas e de acordo com o seu cronograma precisava entregar o shopping próximo do prazo eleitoral estabelecido.
Estavam pensando em desistir do negócio quando em um lance de sorte Benjamim foi visto. Reconhecido pelo tio quando passava de carrão pela rua em uma noite vazia. Estacionou fazendo fila dupla e saiu correndo atrás de Benjamin, no meio da multidão não teve receio em gritar seu nome:
–Benjamin! Benjamin!
Há muitos anos ninguém o chamava assim, ele mesmo já tinha esquecido o seu próprio nome, mas parou ao ouvir e virou para trás pensando que poderia ser outra pessoa, claro! A medida que o homem que gritava seu nome ia se aproximando e perguntava para si quem pudesse ser, inicialmente não reconheceu o tio, viu apenas um cara bem vestido, caminhando em sua direção e ainda pronunciando seu nome. Bem perto, reconheceu o tio que estava diferente, agora com barba e com os sinais do tempo a mostra. Ele se aproximava com os braços abertos. Por um momento ficou feliz e correspondeu.
-Tio é você?
- Rapaz, onde você estava? Estou te procurando há um ano.
Benjamin pensou que o tio estava procurando um ente que tinha se perdido no mundo, iria perguntar sobre ele e pensava que lhe daria acolhida, ajudaria-o, então ia explicar tudo que aconteceu desde a sua partida.
- Você, tio, não sabe o que aconteceu com a minha vida nesse tempo e.....
Nem começou a falar foi interrompido pelo tio que não se importou com que iria dizer. Obcecado pelo negócio o tio disse ainda um pouco ofegante.
- Preciso fechar PARA ONTEM um negócio, um grande terreno, mas que está em seu nome.
O tio não queria saber o que acontecera com ele. A oportunidade fez com que ficasse cego. Ele não reparou como seu sobrinho estava surrado, sujo e com os dentes podres. Já tinha gastado sua fortuna e as dividas se acumulavam. A venda daquela propriedade representava mais alguns anos de aventuras, mas não era seu e imaginava ingenuamente que aquele trapo de homem, seu sobrinho, não ligaria, pois nunca ligou para essas coisas e não se importaria principalmente agora, pois a propriedade só estava no nome de Benjamin e este era apenas um detalhe. Certamente não faria questão.
Inicialmente Benjamim não disse “sim” e nem “não” falou que ia pensar.
O tio perguntou:
O tio perguntou:
-Como?
Ele não acreditava que aquele farrapo pudesse pedir para pensar, pois ele tinha se tornado um indigente e a propriedade estar em seu nome era apenas um lance de sorte, pois tinham, na época, tantas propriedades e patrimônios que nem podiam saber sobre todas. Muitas vezes passavam por elas de carro ou helicóptero e nem sabiam que eram suas.
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Na tarde do dia seguinte resolveu interromper seu sono para ir no escritório do Dr. João Maria ex-morador de rua que foi ajudado por Benjamin por vários anos, inclusive incentivou-o a estudar. Quando arrumou emprego e alugou um quartinho dando adeus à rua João Maria colocou a cabeça nos estudos, quanto mais estudava imaginava que sua vida ganhava contornos nítidos como de um quadro em branco que começava a ser pintado. Chorou no dia em que viu seu nome na lista do vestibular. Passou a estudar e a trabalhar para se manter, pois a faculdade era pública e a disciplina que mais gostava era Teoria Geral do Estado, mas se especializou em Direito Civil. Naquela tarde estava muito ocupado, mas quando viu seu velho amigo na porta, abriu um sorriso e deixou o trabalho por uma meia hora. Instruiu Benjamin dizendo que deveria passar no Cartório de Registros Civis fazer uma cópia de sua Certidão de Nascimento, fazer um RG e ir ao Cartório de Registro de Imóveis para pegar o Registro do Terreno que certamente estava em seu nome, depois disso entraria com um termo de reintegração de posse, uma medida cautelar para que fossem respaldados juridicamente.
Benjamin se ocupou naquelas semanas dessa parte burocrática e já fazia planos. O que Benjamim faria com aquela área? Sentia sempre a necessidade de partilhar as coisas. Poderia ali criar uma comunidade e levaria para lá. Todos os moradores de rua que conhecia. Gente honesta e sofrida que vive em barracos na beira do rio e os sem-teto, desalojados por uma reintegração de posse. Pensava que poderia ser uma sociedade baseada nos moldes do anarquismo ou do comunismo. Teria assembleias populares que decidiriam, criaria cooperativas de reciclagem e trabalho artesanal. Todos teriam teatro, leitura, diversão, brincadeiras, festas e religiosidade. O bairro chamava-se Igualdade. Ali todos viveriam de forma fraternal e solidária. Benjamim até procuraria a prefeitura para pedir melhorias para a comunidade, pois precisava apoio do governo municipal para dar suporte à cooperativa de catadores de lixo. A cooperativa daria renda e dignidade aos moradores da Igualdade.
Procurou Joaquim e José, nordestinos em busca de uma vida melhor tinham conseguido um barraco e estavam até bem, antes da desapropriação. Rita catadora de papelão tem que ser rápida antes que os coletores façam a coleta e deu em jeito de acomodar os dois filhinhos no carrinho. Cintia é a líder sem teto que já perdeu as contas das casas que já ocupou, no final das contas sempre tinha que sair senão eram cacetetes bombas de efeito imoral. Uma vez estava para dar a luz e a polícia veio feroz, mas por Deus um dos fardados se humanizou em um súbito momento a socorreu. Ela deu a luz a Danielzinho. Todos eles estavam bem a margem, alguns a direita outros a esquerda, mas não importa estavam a margem da sociedade buscando a sobrevivência.
Quando depois de semanas estava tudo certo com a Justiça, então levou todos para lá. Quem lhes deu apoio foi a ONG chamada “De mãos dadas” seu presidente Carlos Avelar, um sociólogo que lutava através dessa organização para dar cidadania a grupos excluídos da cidade. Ele não estava ligado a nenhum partido, muito embora tivesse um amplo leque de relações na cidade. Sua ONG tinha propiciado a autonomia a muitos grupos e associações. Por exemplo, o grupo das mulheres vítimas de violência. É uma espécie de lugar que oferece a essas mulheres um abrigo, além disso, assistência psicológica, social, jurídica. Seu grupo apóia todas as cooperativas da cidade feita de gente humilde que tenta sobreviver. No caso da cooperativa da Igualdade deu suporte, treinamento para que a cooperativa se tornasse realidade, também incentivou a cooperativa de artesanato que transformava garrafas pets em todo tipo de coisa, até bolsa. A ONG cuidava até das vendas. Ela ficava com uma pequena parte da renda gerada pela venda dos produtos, pois organizava a feira do artesanato que já era conhecida na cidade. Por meio da feira alavancava a venda dos produtos das cooperativas de artesanato. A maior parte dos lucros ficava com os novos artesãos que passaram ater uma renda.
Parte das mulheres organizou uma cozinha comunitária. Era simples, feita de tijolos reaproveitados de antigas construções e um fogão à lenha, usaram também barro e os panelões foram doações. Cada um se virou para conseguir o seu prato, muitos também improvisaram, no inicio usavam até pote vazio de manteiga. Existia também um grupo responsável por recolher as sobras do Ceasa ou CEAGESP, dos restaurantes que cediam. A comunidade ia sendo montada aos poucos e ninguém ficava desocupado. Todos tinham tarefas diárias. As bebidas a álcool eram proibidas. Organizavam festas comunitárias todos os sábados. A comunidade era ajudada por muitas pessoas que viam a possibilidade de integração daquelas pessoas novamente à sociedade. Brevemente seriam ministrados cursos onde as pessoas poderiam se formar, ter uma profissão, assim que arrumassem emprego poderiam deixar a comunidade e seguir com suas novas vidas, integrados novamente à sociedade. Ali deveria ser um trampolim.
A vida cotidiana na Igualdade era voltada para o trabalho. O povo estava envolvido na cooperativa de material reciclável. Uma parte era reaproveitado para a confecção de artesanato, por exemplo, com garrafas pet. Todo santo dia, exceto o domingo. A labuta começava as sete e se estendia até nove da noite. Havia três turmas que saíam às ruas pra fazer a coleta. A primeira turma saía na parte da tarde recolhendo o que era reciclável, recolhiam papelões, latinhas e garrafas pet. As lojas descartavam caixas de sapato e sandálias, papelão embalagem de eletrodomésticos, passava também nos supermercados que descartavam as caixas que embalava os produtos. O segundo grupo era aquele que saía pela noite nos shows em praça publica recolhendo as latinhas, também em boates e restaurantes que descartavam as preciosas latinhas. Os grupos eram responsáveis por enfardar sua coleta, então depois de cada coleta era hora de enfardar. O grupo que coletava à noite enfardava a tarde, o grupo da tarde enfardava na manhã do dia seguinte. Cada grupo ficava também responsável por vender o material, pois toda semana o caminhão da coleta passava na Igualdade. A ONG arrumou uma máquina que enfarda o material reciclável.
Havia o café da manhã e da tarde. Pela manhã é a primeira coisa que faziam antes de ir trabalhar. Tinha pão e café para todo mundo. De fato ninguém reclamava do trabalho na Igualdade. O grupo da manhã ia dormir cedo lá pelas dez da noite.
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Os vizinhos nunca se conformaram com aquela comunidade. Para eles estava tudo degenerando, pois antes eram bairros de pessoas “distintas” agora são obrigados a conviver com um "favelão" e seus imóveis ainda se desvalorizaram. A pobreza ali, no seu quintal. Sentiam-se até incomodados pelo som vindo das festas comunitárias. A solução seria sair dali? Todos respondiam: Não. Deveriam expulsá-los dali. O prefeito seria ainda mais cobrado, pois sabiam que a eleição era naquele ano e não só votariam, mas contribuiriam financeiramente para a sua campanha. Queriam se livrar daquilo que consideravam um mocambo. Eles se incomodavam com a Igualdade mais do que a Igualdade com eles.
Os donos dos casarões já não se sentiam seguros quando viajavam, por isso contrataram uma empresa para fazer a segurança do bairro. A comunidade da Igualdade tinha como vizinhos um pessoal de alto nível financeiro. Eles não lhes cumprimentavam, quase sempre passavam por eles de carro. A película dos vidros dos automóveis evitava qualquer troca de olhares, os moradores da Igualdade não sabiam quem estava dentro daqueles carros, se era homem ou mulher, jovem ou criança, feio ou bonito. Só conheciam os carros. Os moradores acionavam seus portões eletrônicos que abriam e fechavam depois que o carro tinha entrado.
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Os guardas de segurança Carlão e Zé foram designados para a rua principal que desemboca na comunidade da Igualdade, eram cumpridores de ordens e geralmente não tinham muita opinião sobre as coisas, mas quando as tinham eram as mesmas dos patrões ou de quem estavam servindo, mas quando as tinham eram opiniões inconsistentes como, por exemplo, achavam que o Congresso Nacional deveria ser fechado e a pena de morte aprovada no Brasil. Eram daqueles sujeitos que nasceram para serem paus-mandados. Eram casados tinham filhos e zelavam pelos seus empregos. Se fossem despedidos o que fariam? Muitos de seus patrões nem lhes dirigiam a palavra, mas serviçais sempre davam: - bom dia! Ou respondiam: - sim, senhor!
Os dois seguranças tinham esperança de ficar ricos um dia por meio da loteria federal, também gostavam de programas policiais e filmes violentos. Eles consideravam os moradores da Igualdade um bando de vagabundos que tinham que sair dali. A vida ficou difícil nas redondezas da Igualdade para aqueles que coletavam o lixo dos barões. Sempre eram abordados pelos seguranças da área que perguntavam o que faziam ali, acompanhava-os, enxotava-os das ruas “particulares”. Outros guardas falavam absurdos e em alguns casos havia desentendimento, brigas, socos e pontapés, os seguranças sempre chamavam a polícia. Isso era quase todo dia e a tensão aumentava, o ar estava carregado e as proximidades não eram mais seguras para os moradores da Igualdade que começaram a sentir-se ilhados. Em cada rua do bairro tinha pelo menos um guardinha de segurança, mas nem todos eram folgados em uma das ruas tinha o seu Benedito, um ex-policial aposentado que era solidário e fizera amizade com o pessoal. Sempre levava a patroa aos sábados na festa comunitária. Pela sua rua podiam passar sem problemas. Ali também os moradores tinham mais consciência social, poderiam ser gente boa, quem sabe?!
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Foi numa manhã que chegou o Oficial de Justiça com a notificação de que a área seria desapropriada. Era como se o céu caísse na cabeça de todos. E agora como fica? Perguntaram. Voltariam para rua? Suas vidas seriam desfeitas? Mas Benjamin não é o dono? Diziam os jornalistas que a sociedade exigia o fim daquela favela. Urgentemente fora chamado uma assembléia dos moradores em que ficou decidido que Dr. João entraria na justiça com um Mandado de Segurança para garantir a posse de Benjamin e assim os fez o advogado, pois esse mandado suspenderia o efeito da ordem de desapropriação, mas o Meretissimo Juiz acreditava realmente que aquela favela era uma afronta aos “cidadãos de bem” e negou o mandado de segurança. Na segunda assembléia, os moradores cientes da negativa resolveram lutar por aquela comunidade.
Lorde tinha lido Desobediência Civil, livro base para a luta pacífica de Gandhi que libertou a Índia da Colonização Inglesa, mas não estava disposto a aplicar essa estratégia, pois uma greve de fome poderia sensibilizar a opinião internacional. Poderia ser a melhor estratégia, mas temia que o Choque os arrastasse de lá se preciso, além de tudo a opinião publica não apoiava os moradores da Igualdade. Pensava que cada luta se desenvolve em contextos diferentes, por isso era necessário entender o palco estratégico. Avaliou que seria impossível a luta ser tratada de forma pacifica. O povo da Igualdade estava pronto para as ordens. Benjamin não esperava que seu povo ficasse tão unido nesse momento. Todos eles se enraizaram naquela comunidade. Ali finalmente tinham a dignidade que lhes faltaram por anos, viviam felizes alimentados pela solidariedade, irmandade, cooperatividade e autonomia.
A indenização da prefeitura só permitiria a Benjamin comprar um terreno na periferia e como iria para a periferia e lá fundar uma comunidade, pois já tinha dono e nenhum traficante aceitaria. Certamente iriam para um lugar sem a mínima infra-estrutura de água encanada, esgoto e luz e muito longe do centro. Certamente era uma forma de matá-los aos poucos, pois ali estariam bem próximos do crime e da violência, pobre matando pobre quando não a polícia. Além de tudo, aquele terreno o pertencia, era uma conveniência, sabiam que a cidade é partida e que pobre tinha seu lugar na cidade que é muito longe da região central e o que estava fazendo aquele favelão no coração da cidade? A boa sociedade achava muita arrogância dos moradores da Igualdade não quererem ir para o seu lugar que é a periferia da cidade. Pensavam que lá encontrariam gente como eles, tudo ficaria certo e se matassem uns aos outros não era culpa deles, mas devido ao seu estágio de barbárie, assim os ricos pensavam.
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Comandante Quintão se fez dentro da oficialidade da Polícia Militar do Estado de São Paulo. É adestrado. Capaz de executar ordens superiores com precisão e eficiência. Já participou de várias ações importantes, combateu o Movimento dos Sem Terra – MST no Pontal do Paranapanema esteve no massacre do Carandiru, mas seu currículo não vem de hoje, pois quando era jovem soldado, muito embora fosse policial Militar e não policial civil. Participou do Esquadrão da Morte em São Paulo. Oriundo de uma família de policiais. Seu pai participou da primeira turma do Departamento de Ordem Política Institucional – DOPS, seu avó fez parte dos quadros da Força Publica Paulista e na década de dez prendeu muito anarquista e comunista que fazia greve. Os poucos amigos que freqüentavam sua casa podiam notar na sala ao lado da velha cômoda uma foto de filho, outra do pai, do avô e do jovem policial, filho do comandante Quintão, quatro gerações estavam ali para quem quisesse ver, diriam; quatro gerações em defesa da lei e da ordem.
Não era nem nove horas da manhã e a Tropa de Choque estava na entrada da comunidade. Os paus, pedras e disposição dos moradores não faltavam para a resistência. A imprensa estava lá com sua língua afiada para interpretar os fatos de forma conveniente ao sistema. A sociedade esperava que aquela gente desocupasse o lugar de forma ordeira e pacifica, pois seria inconveniente para todos se alguém saísse ferido.
O negociador da polícia deu um prazo, teriam uma hora para que começassem a sair, mas o prazo estava acabando e os moradores ali, sem arredar. O Choque certamente iria agir quando o prazo terminasse. Vencido o prazo todos os policiais se agruparam e empunharam seus os escudos com a mão esquerda e a outra mão segurava o cacetete, resolveram, inicialmente, não usar arma de fogo. Deveria ser uma ação rápida. Marcharam em direção a Igualdade, com seus cacetetes batiam nos escudos e marchavam com seus coturnos militares produzindo um som amedontrador. Todos os moradores, agora guerrilheiros urbanos, estavam prontos! A polícia cortou inicialmente a energia do bairro, cortaram as correntes do portão principal e o Choque entrou.
O pessoal começou jogando os cocktails molotov por cima dos grandes escudos do choque. Os soldados começaram a queimar. Os artefatos também eram jogados por baixo dos escudos. Diante da situação inesperada, os soldados bateram em retirada. Agora, sabiam que os moradores não estavam para brincadeiras e tinham se organizado. Logo aquela “gentinha desordeira e marginal." Tiveram o cuidado conversar com a imprensa para que tal vexame não fosse noticiado, a imprensa, claro! Como sempre faz, disse OK. O Choque se preparava para a próxima investida, agora com armas letais, prontamente cada policial retirou a identificação da farda, dessa forma dificultava seu reconhecimento. O Choque já estava preparado. Em cima o helicóptero da Polícia Militar passava informações da movimentação dos moradores.
O dia já estava acabando, o pessoal da imprensa fez uma avaliação e achou melhor não manter mais aquele confronto em segredo. Se o pessoal da imprensa avaliou que se transmitissem a terceira investida do Choque ao vivo, arrebentariam na audiência. Poderiam até chegar ao primeiro lugar. Era seis da tarde e começava o programa Patrulha 69, mesma hora que supunham ser o horário da segunda investida, pois alguém da Polícia vazou a notícia. O apresentador anunciou a investida e todos que estavam com o controle remoto na mão trocando o canal deixaram ali e ficaram observando atentamente, sem perder um lance e na expectativa, pois imaginavam que o sangue jorraria. Um helicóptero da emissora sobrevoava a Igualdade e transmitia imagens ao vivo. Os expectadores esperavam que aquele desfecho acontecesse antes do horário da novela, finalmente um entretenimento real.
O Lorde pensou então que a luta deveria ser travada dentro dos galpões, como seria? Todos os moradores guerrilheiros urbanos se concentrariam nos galpões, fechariam quase todas as suas entradas por dentro e deixaria penas uma aberta. Lá dentro, já preparados e no breu, ofereceriam muita resistência. O Choque na sua truculência entrou pela segunda vez e não viu ninguém. O pessoal do helicóptero passou a informação de que todos se concentravam dentro do galpão. O Comandante dos “guerrilheiros da Igualdade” Benjamin tinha um plano B. Esperava que os policiais pudessem colocar fogo no galpão para que todos saíssem e se isso ocorresse os moradores sairiam em grupos, mas todos de uma só vez. Eram oito, as saídas, assim formaram oito grupos que sairiam jogando os cocktails e atacando com ferros, pedras e materiais perfurantes, mas os soldados que ainda subestimavam a capacidade daquele povo receberam a ordem de seu superior: – Vamos desentocar esses ratos! Não usariam outro fogo que não fosse o das armas que empunhavam.
O Choque foi direto para o galpão e uma só entrada estava aberta parecia um convite. O oficial superior poderia imaginar que entrar ali seria o mesmo que entrar no inferno, mas recusava-se a dar algum tipo de crédito àquela gente e ordenou para os soldados entrassem. No momento adequado a reação dos moradores no breu, muitos soldados foram atacados com pedras, todo tipo de material pontiagudo e também porretes. Desesperados, muitos policiais abriram fogo, muitos policiais foram atingidos pelo fogo amigo, muitos moradores foram atingidos também e não se sabia ao certo quantos desencarnaram ali, pois a polícia escondeu as informações dificultando uma possível investigação do Ministério Publico, também a falta de identificação dos policiais em seus uniformes também prejudicou. Só dava para saber quem sobreviveu e não eram muitos.
A resistência da comunidade da igualdade atraiu fabulosa audiência, atingiu picos nunca antes alcançados. No dia seguinte, antes das seis da tarde, as pessoas corriam saindo do trabalho para casa. As avenidas ficaram congestionadas, colocaram um telão na praça central para todos que ainda estivessem na rua acompanhassem cada detalhe. Antes de chegar em casa, todos queriam garantir a cervejinha e o aperitivo para acompanhar, por isso as filas nos supermercados também eram enormes. Naquele dia a emissora alterava sua programação normal e ampliava o horário do programa patrulha 69. Representantes da emissora procuraram o prefeito Jorginho para dizer que dariam visibilidade a ele e às suas benfeitorias se arrumasse a próxima investida para o horário que começasse o programa Patrulha 69. O prefeito, lógico, topou e entrou em contato com o governador que era do mesmo partido que ordenou para o seu secretário de segurança o conveniente horário da investida policial.
Sabe o Comandante que a ação de investida não tem hora determinada. Depende muito do deslocamento do inimigo e nesse caso ele não tinha se movido, mas já sabia que tinha algum interesse a favorecer. Obediente reuniu um número três vezes maior de homens que imaginava ser um contingente superior ao número de moradores. Deveria expulsá-los da ratoeira fosse como fosse. No horário conveniente a investida começou. Dentro do galpão os resistentes estavam cansados, mas apostos aguardavam, ouviram o som de coturnos em marcha militarmente atlética, prepotente, cheios de rancor. O som das botas era mais audível conforme aproximação, então se prepararam para a execução do planejado. O que o público viu das câmeras dos helicópteros foi o galpão ardendo em chamas. Eram chamas enormes, a fumaça tomava todas as redondezas e ninguém podia ver muita coisa. Benjamin tinha dado a ordem de retirada. Confusão e a cortina de fumaça permitiram que muitos escapassem, embora a área estivesse cercada, mas aquela fumaça toda, a confusão e já era noite, Benjamin escapou e foi para a favela do morro, zona da bandidagem que o considerava.
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A rede de Lorde Favela era extensa e envolvia todo tipo de gente, os traficantes o protegeram. A busca por ele foi intensa. A imprensa divulgava sua foto nos jornais e dizia que sua prisão era uma questão de tempo. Lorde mudava de favela a cada semana para dificultar as buscas, percorria todas as favelas aliadas, ora aqui, ora ali. Por um tempo foi o mais procurado da cidade. Aos poucos Benjamin se tornava um ícone, uma lenda. Os grupos de RAP faziam letras sobre ele e os jovens da periferia usavam a camiseta com sua foto. Benjamin passou a ser símbolo da resistência do povo pobre e sofrido frente às classes dominantes. Em tão pouco tempo era o mais procurado, considerado o inimigo número um da “boa” sociedade brasileira, herói dos sem-teto, sem-terra, sem-comida, sem-dignidade, sem-oportunidades. Todos do jardim Ângela, do Capão, toda a periferia o admirava pelo que fez e tentou fazer pelo seu povo.
Os mais importantes intelectuais de esquerda, secretamente, encontravam-se com ele quando vinham ao Brasil dar suas conferência palestras. Nos seus países falava sobre suas idéias e sobre a comunidade da igualdade. A esquerda do mundo passou a considerá-lo um revelador das mazelas brasileiras. O lorde passou a escrever textos e publicá-los na internet, a rede on-line expandia suas idéias. A revista À luta companheiros, um tipo de mídia independente que existia em um Estado, em tese, “democrático“, publicaram uma longa entrevista com Benjamin onde ele também explicava a experiência do bairro da igualdade.
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O comandante do choque, Quintão, depois de recuperado, após várias plásticas, pois o fogo de um dos cocktails comeu a sua carne. Sentia um desejo insano de vingança caçar Benjamin era uma questão de honra. Foi o Cabo Jackson que deu a idéia de montar um grupo secreto de policiais, uma espécie de esquadrão da morte para caçar o meliante. Essa força tarefa secreta reuniria informações e planejaria uma ação envolvendo policiais na caça a essa figura tão inconveniente ao sistema. O esquadrão usaria o aparato policial para atingir os seus objetivos. Era preciso um delegado que encampasse a causa e montasse uma grande operação para ter o controle da favela do morro. Na invasão caçariam Benjamin. O esquadrão era formado pelo comandante Quintão e mais seis policiais indicados a dedo. O primeiro era o Delo, de Sezerdelo, seu nome no registro, tinha a seu dispor uma ampla rede de informantes oriundos de uma rede criminosa que envolve desde boca do tráfico até jogatina e lavagem de dinheiro. Junto com Delo estava o freitinhas, Serafim, Maia, Leite e o Assumpção.
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Ed era um boyzinho viciado, mas sempre foi filhinho de papai que freqüentava a favela, pois lá era a fonte das drogas que consumia. Ele não compreendia e não poderia mesmo entender qual a razão que levava todo aquele povo a admirar o Lorde Favela. Era um pária do lugar. Serjão, o líder do tráfico no morro era um cara ruim, mas que respeitava uma mente inteligente. Queria ter Benjamin ao seu lado, também era grato por que ele o instruiu com seus métodos e teorias garantiu o seu poder no morro. Nunca compreendeu porque não quis ficar morando ali. A experiência do bairro da igualdade só fez aumentar seu respeito pelo Lorde.
Um aperto faria com que Ed entregasse o lorde sem receios, mas foi assim mesmo no primeiro tapa na cara apontou a seta do dedo de ferro. Entregou o Benjamin como um Judas Escariotes, um Joaquim Silvério dos Reis. Benjamim tinha freqüentado naquelas semanas três favelas aliadas e sabia que os policiais iriam buscá-lo, não era preciso que alguém falasse isso para ele, pois a liderança que exerceu contra o sistema dos calhordas e ordinários teria como conseqüência o seu extermínio físico, esse tipo de coisa era com um protocolo, mas só se deixasse.
Estava na última casa daquela favela e dava um trabalho chegar até lá. Um ambiente bem humilde de casa sem reboco e com os tijolos oito furos a vista, o chão de concreto batido e a caminha de solteiro que rangia. Ouvira o som dos grilos à noite inteira, mas naquela manhã, como todas as manhãs das últimas semanas, acordou cedo, deu uma pequena tristeza, sentimento de vazio, talvez solidão, sei lá. Fez o café e ficou assistindo um pouco de televisão, então bateu uma neura, então preferiu arrumar suas poucas coisas que cabiam em uma mochilinha e cair fora dessa rota de fuga que estava tomando, pois não estava virando mais e não sabia como o sistema não o tinha encontrado ainda, pois ele é muito inteligente. Tomou um banho arrumou-se e desceu o morro calado rumo ao ponto do ônibus lá na avenida principal que dava para o morro e não era nem sete da manhã. Poucas pessoas estavam acordadas, era dia de domingo.
Minutos depois a polícia invadiu a favela do morro, os membros do esquadrão da morte estavam misturados aos outros policiais, os objetivos de fachada eram a prisão de Serjão, o que daria ao sistema o controle da favela. Ed ou Edilson entregou o endereço onde estava o Lorde. Era lá, bem no alto, daria um suadouro até chegar lá, mas ao chegarem lá prontos e posicionados o Delo arrombou a porta e estava pronto para disparar, mas ficaram frustrados quando não encontraram ninguém na casa. Benjamin estava há alguns quilômetros dali, já misturado ao povo em trafegando de ônibus por alguma rua que compõe o palheiro das milhares de ruas da cidade. No ônibus ouviu sobre a invasão através do radinho do motorista que estava sintonizado. Para onde vai o nosso Lorde Favela ninguém sabe, nem mesmo esse autor.
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