As desrazões do Monarca Cidadão.


       Escrito por Samuel de Jesus em 2006.

  A República representará o predomínio da localidade, do mundo rural, patriarcal, clientelista. Os mecanismos democráticos não foram constituídos, ao longo do Segundo Reinado, embora vivêssemos, na prática, em um sistema monárquico parlamentarista, o Estado não possuía capilaridade e seus tentáculos não alcançavam a localidade, o interior, os grotões. Ali, preponderava a influência e o poder do chefe político local, o coronel, o fazendeiro, que protegia, assistia, estabelecia o código, julgava e punia.
        A centralização monárquica é relativa. O império era sustentado por uma ordem de conveniências e necessidades. O monarca cidadão deveria considerar o povo como cidadão, não súdito. Considerar o povo cidadão seria universalizar a educação, atender as demandas sociais, mesmo no ermo mais profundo. Os mecanismos de decisão do povo não foram instituídos e barradas as possibilidades de criá-los. O imperador não o fez, jamais faria, claro! Mas, de qualquer forma, seus atos de sentido liberal foram muito tímidos ou inócuos, exemplo, a Lei Áurea (1889), na prática, não libertava os escravos, pois não foram criadas condições para que o escravo tivesse autonomia econômica, na prática ficou alienado à fazenda, pois sempre vivera lá. Fora dali não teria um teto, se tivesse sorte moraria em uma palhoça, choça, cortiços, mocambo (mais tarde a favela). Não existiu, da parte do Estado, um plano que autonomizasse os negros brasileiros. Libertando-os de fato.
        O que fizeram foi baldar as possibilidades de sua autonomia. A Lei de Terras de 1850 tinha essa intenção. Dividir a terra entre as elites para que o negro, uma vez livre, não se tornasse pequeno proprietário. A terra era elemento chave em um país agrário. Sinônimo de poder. Controlar a terra era controlar também o processo de imigração no estabelecimento no sistema de colonato ou parceria.
        O Decreto n°1331, de 17 de fevereiro de 1854, estabelecia que nas escolas públicas do Brasil não seriam admitidos escravos, e a previsão de instrução para adultos negros dependia da disponibilidade de professores. O Decreto n° 7.031-A, de 06 de setembro de 1878, estabelecia que os negros só podiam estudar no período noturno.
        O nacionalismo como resultado da consolidação do Estado fora construído sobre a aura imperial. Só o imperador reunia legitimidade política frente a fragmentação territorial do Brasil devido às Rebeliões Regênciais. Isso pode ser afirmado com amplo respaldo historiográfico. Por outro lado o imperador se ocupou em consolida-lo possibilitando a alternância dos grupos políticos em cena. Mediou, conciliou para que também sobrevivesse. Não era possível avançar, ir além, ao ponto de reformular profundamente as estruturas da política brasileira.
        Segundo Florestan Fernandes o processo da Revolução burguesa no Brasil ocorre com absoluto controle das elites sobre o processo político, econômico e social. As elites não permitiram a autonomização do povo que continuou alienado aos senhores. O povo não teve acesso aos cursos superiores, universalização do ensino, voto secreto (voto de cabresto) ou consciente, acesso à terra e à política, nem autonomia econômica.
        Na Europa a nação representa a unificação dos mercados, no Brasil, unificação entre as elites e seus interesses políticos e econômicos, o norte a manutenção do subsídio à lavoura canavieira e produção do açucar, no sul a solução da questão da mão-de-obra escrava para a “livre” e extremo sul garantia para a produção do charque, etc.
        Os braços muito curtos do império não poderiam alcançar os grotões do Brasil. Ali preponderava o coronelismo. A elite imperial não possuía a supremacia política. Ela também se equilibrava, embora sua posição tenha sido por muito tempo confortável, mas estava chegando a hora das mudanças.
        O monarca cidadão não representava um mundo liberal, seus domínios eram o inverso daquela sonhada civilização européia. Nos trópicos prevalecia a “gentalha” e seus estranhos costumes avessos aos hábitos e práticas do velho mundo. O monarca era um diletante e sua prática diferia de suas idéias. Ele não era produto de seu meio, nem tão pouco refém das “elites”. No seu longo reinado equilibrou-se, tinha um instrumento fabuloso, o Poder Moderador, mas não permaneceu atento ao movimento da balança do poder, nem criou novas bases de sustentação de seu poder (que poderia ser o povo), pelo contrário, recrudesceu-se e fez inimigos que não poderiam ser subestimados como os militares que possuíam as armas e as usariam para colocar fim em seu Império cuja estrutura já comprometida, esperava somente o vento das mudanças para que ruísse definitivamente.
        O Brasil Império é um período da vida política brasileira muito complexo onde várias forças coexistem e cada uma delas tenta se impor, dentre elas: a elite imperial, a elite rural, a elite industrial e financeira (representada pelo Barão de Mauá), os abolicionistas, os republicanos e os liberais radicais e idealistas que defendiam uma revolução liberal De fato.
        A realidade é que existem dois brasis, um formal e outro informal. Esse último sempre predomina, deita raízes tão profundas que torna muito difícil sua retirada por completo. O poder é muitas vezes definido no âmbito da intimidade e não do aspecto estritamente legal. Assim, predomina a relação pessoal e não legal, o apadrinhamento, o compadrio, a cordialidade. Por isso os liberais radicais e idealistas, assim como capitalistas industriais e financeiros, não encontrarão bases amplas de sustentação, pois a via legal só tem vida quando é impressa no papel.
        O imperador não estava interessado em criar uma sociedade liberal, mas se quisesse poderia fazê-la, aplicando os mecanismos adequados, lançando as bases, rompendo os laços e desfazendo os contratos, cosmopolitizando seus domínios, aquela parte do Brasil alcançada por seus tentáculos. Poderia ter feito uma revolução fora da ordem ao ponto de confrontar-se com o meio rural, em uma cisão, um momento decisivo, um momento divisor de águas da História do Brasil, onde a nação moderna se debruçaria sobre a nação rural.
            A Guerra Civil foi um momento decisivo para que os Estados Unidos se transformasse em uma sociedade liberal. Foi um divisor de águas. A partir deste conflito e a vitória do norte é que os Estados Unidos começou a reunir condições para que no século XX se tornasse um país central. Venceu o norte industrial, yankee, liberal, perdeu o sul monocultor e escravista. O Brasil nunca chegou a um momento tão decisivo.
Aqui conciliamos, pactuamos, acordamos e nunca encaramos de frente nossos problemas, sempre procuramos sua distensão, coexistimos antagonicamente dentro da ordem. A decisão nunca foi do povo. Ele permanecia bestializado ou bilontra? Seja qual for a resposta, de fato, a decisão nunca passou pelos círculos liberais radicais, idealistas ou populares.
        Aqui a questão social sempre foi tratada no fio da espada, na bala, mosquete, rifle, calibre 12. Muito nos diz a Balaiada, a Cabanagem, Malês, Canudos, Contestado, Coluna Prestes, Guerrilha do Araguaia e MST e o massacre de Eldorado dos Carajás.
        Em uma relação vertical de poder (de cima para baixo) a resposta é a repressão. Em uma relação horizontal (entre as elites), existe a reacomodação, tentativa de reconduzir à esfera de poder, por meio de um pacto ou acordo, a elite revoltosa. A revolta do Rio Grande (1832), chamada Revolução Farroupilha e a revolta de São Paulo (1932), chamada Revolução Constitucionalista. O caso do Rio Grande envolve interesses em torno da comercialização do charque, ao final, ninguém fora punido e foram atendidas as reivindicações dos farrapos, o charque ganhou subsídios do governo federal. No caso de São Paulo, o governo provisório atendeu às suas reivindicações e convocou uma Assembléia Constituinte.
        O Brasil ainda é o mesmo e não foram alteradas as estruturas, as bases do Estado, apenas tem se rearticulado, mas em essência permanece sem alterações profundas, nenhuma alteração se dá fora da ordem. A crítica a um governo é uma crítica entre elites cujo povo é uma caixa de ressonância, graças ao aparato de comunicação do qual a elite dispõe. Quase nada acontece fora de seus domínios. No final sempre existe a reconciliação.
        No Brasil, existe uma incapacidade de articulação das camadas populares, seja pela ignorância, falta de consciência de classe ou até mesmo consentimento. De fato, os setores populares organizados são minoria e incapazes sequer de gerar grandes distúrbios ao ponto de ameaçar a ordem.
        O confronto era inevitável, mas o imperador jamais consideraria essa hipótese, permaneceu estático frente as mudanças políticas, sociais e econômicas, fez inimigos importantes e acabou sendo devorado pela ordem de conveniências. 
        Por isso a tese da constituição liberal é um sonho de alguns idealistas e que nunca fora considerado, de fato, pelo imperador. Por final concluímos que o nacionalismo coroado só existiu para manutenção do sistema de produção agrária e manutenção da elite patrimonial.
 O primeiro se refere ao Estado cuja elite imperial, calcada no patrimonialismo ou estamento, tenta se sobressair politicamente, o segundo, transfere ao município a importância política e a constituição de uma rede de lealdade política no qual a província ocupa a posição no topo da pirâmide do poder -  A política dos governadores. O líder da província faz a situação municipal e os municípios, em seu conjunto,  fazem a situação estadual – o que podemos chamar também de situacionismo. O jogo intra-estados é que determinará, na República Velha, a quem cabe a presidência do país.
        

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