LITERATURA: A Traição Do Povo!
Obra literária escrita por Samuel de Jesus no ano de 2008.
O SANTO LIVRAMENTO
Catar lenha. É o que se faz para poder cozinhar os calangos e acender o fumo de corda. O feixe nas costas é tarefa de todo santo dia. Ali, a seca submetia a todos, mas os homens e o gado resistem àquela secura? A resposta seria: mão e pés rachados, mas copos ainda cheios de fé. Um dia viram pela janelinha duas almas lá longe a se aproximar e foram até a varanda esperar, não dava para saber quem eram. Os olhos não os perdiam de vista, curiosos, ansiosos e incertos. Quando chegaram apresentaram-se como anjos do senhor enviados para observarem o tamanho da desolação que há muito tempo afligia o lugar, também vieram dizer à Inocência que daria luzes à esperança, pois a graça fora alcançada pelo povo, chuva pro sertão. O menino então era anunciação de tempo de pão, fartura e a bonança que vem com a chuva. Ela Inocência e seus quinze anos flor da Parayba, só entendia de seca e chão, seria apenas mais uma entre tantas outras meninas a possuir uma renca de corações e bocas famintas, com perninhas e bracinhos, mas avantajadas barriguinhas, mas agora em seu ventre existia uma vida cujo destino estava traçado, um iluminado que seria o símbolo vivo de fé e esperança, assim todos deveriam cuidar e estar em comunhão com ele. Relembraram os anjos que a seiva que nutriria o sertão haveria de ser a fé e nada material, nem a água, nem pão. A longa espera havia terminado, pois aquele menino iluminado representaria a esperança e a graça coletiva alcançada. Agora, teriam chuva e com ela a prosperidade como o sertão há séculos não vivia.
Catar lenha. É o que se faz para poder cozinhar os calangos e acender o fumo de corda. O feixe nas costas é tarefa de todo santo dia. Ali, a seca submetia a todos, mas os homens e o gado resistem àquela secura? A resposta seria: mão e pés rachados, mas copos ainda cheios de fé. Um dia viram pela janelinha duas almas lá longe a se aproximar e foram até a varanda esperar, não dava para saber quem eram. Os olhos não os perdiam de vista, curiosos, ansiosos e incertos. Quando chegaram apresentaram-se como anjos do senhor enviados para observarem o tamanho da desolação que há muito tempo afligia o lugar, também vieram dizer à Inocência que daria luzes à esperança, pois a graça fora alcançada pelo povo, chuva pro sertão. O menino então era anunciação de tempo de pão, fartura e a bonança que vem com a chuva. Ela Inocência e seus quinze anos flor da Parayba, só entendia de seca e chão, seria apenas mais uma entre tantas outras meninas a possuir uma renca de corações e bocas famintas, com perninhas e bracinhos, mas avantajadas barriguinhas, mas agora em seu ventre existia uma vida cujo destino estava traçado, um iluminado que seria o símbolo vivo de fé e esperança, assim todos deveriam cuidar e estar em comunhão com ele. Relembraram os anjos que a seiva que nutriria o sertão haveria de ser a fé e nada material, nem a água, nem pão. A longa espera havia terminado, pois aquele menino iluminado representaria a esperança e a graça coletiva alcançada. Agora, teriam chuva e com ela a prosperidade como o sertão há séculos não vivia.
No quintal da casa onde nascera, caiu a primeira gota e choveu um mês sem parar, sertão quase se afogou em tanta água, caiu tudo de uma só vez e sabe como é quando o corpo não está acostumado, causa uma desgraceira danada. Rio transbordou, açudes se abancavam feito copo raso, lama e atoleiro. O rio trouxe a enchente. Era como se deus estivesse repondo os atrasados de água, mas devia ir com calma se não sertanejo afogava. Por outro lado a alegria era tanta que muitos diziam que chuva demais não estragava nada não.
Com o passar do tempo as chuvas fora se regularizando, tudo foi amainando. Às vezes o que havia acontecido era apenas a falta regulagem adequada de águas do céu para aquela região, pois fazia tanto tempo que não chovia que lá no céu ninguém sabia qual o metro cúbico adequado àquele lugarejo, mas foi se regulando, medindo e chegando ao ponto certo. Ninguém há de reclamar por isso. Lá no céu ninguém tinha upgrade em prover água pro sertão, na verdade era um departamento lá do céu, esquecidinho, onde às vezes o funcionário comparecia e ficava lendo o jornal celestial o dia inteiro sem ter muito que fazer. Às vezes vinha um e-mail com ordens para liberar a torneira de chuva para uma regiãozinha ou outra.
Com o passar do tempo as chuvas fora se regularizando, tudo foi amainando. Às vezes o que havia acontecido era apenas a falta regulagem adequada de águas do céu para aquela região, pois fazia tanto tempo que não chovia que lá no céu ninguém sabia qual o metro cúbico adequado àquele lugarejo, mas foi se regulando, medindo e chegando ao ponto certo. Ninguém há de reclamar por isso. Lá no céu ninguém tinha upgrade em prover água pro sertão, na verdade era um departamento lá do céu, esquecidinho, onde às vezes o funcionário comparecia e ficava lendo o jornal celestial o dia inteiro sem ter muito que fazer. Às vezes vinha um e-mail com ordens para liberar a torneira de chuva para uma regiãozinha ou outra.
Quem não gostou da história foi o Diabo, comerciante de almas, negócio muito lucrativo naquelas bandas onde muitos sertanejos se desencaminham. É coisa mais fácil onde o sol esquenta a moleira ao ponto de confundir as pessoas que perdem a noção das coisas e onde muitos homens se perdiam pelo caminho se desventurando e se afundando no doce amargo da pinga ou cometia desatinos pela conseqüência da seca, gostava mesmo de condenar aqueles que vendiam as filhas por um quinhãozinho, melhor ainda aqueles que violavam as filhas colocando-as de barriga. Gostava de atentar aqueles que tinham fé, colocá-los em provação, quem resiste nesse lugar? Ainda mais com uma criatura dessas a atentar todo santo dia.
Lá, era boa freguesia para dona morte que alcançava a meta todos os meses, pois era criança, velho, homem maduro, quando chegava o dia não perdia tempo. Aquela região, só se comparava às zonas de guerra, ou aos acidentes de trânsito. Ela era uma das funcionárias mais elogiadas pelo chefe, Sr. Destino e seu cartaz na matriz aumentava a cada dia. Foi designada para lá como uma aposta da empresa DEADS AND LIVES COMPANY, uma multinacional, pois a seca havia começado e ninguém imaginava o que iria acontecer. É uma norma dos negócios: algumas vezes é preciso arriscar. Ela não tem concorrência, pois a empresa tem o monopólio do serviço.
Zé diabo não queria que um rebento estragasse seu negócio, pois com a chuva todos os sertanejos teriam esperança e os descaminhos seriam poucos, assim como os desvarios, quase não teria almas para colocar em perdição, então foi conversar com dona morte para ver quais eram as possibilidades dela levar a vida, já dentro do ventre, de alma tão predestinada, mas ela foi logo avisando que não podia fazer nada, pois cada um estava com o seu destino traçado e que todos tinham uma missão na terra e o daquele feto estava começando, assim não poderia ajudá-lo. O empresário de almas não gostou de ouvir aquilo e deixou-a falando sozinha.
A seca foi-se embora homens, mulheres e crianças começaram a plantar e tudo que se plantava dava e todos saciaram sua fome, começaram a ficar felizes com a vida. O rio que cortava a cidade e que estava seco há mais de dez anos ressurgiu e foi rebatizado de rio da fé, pois como o rio era de vazante muitos até esqueceram que aquele rasgo na terra fora um rio num passado bem distante, assim não se lembravam do nome antigo, passou ser a artéria da cidade cujas águas eram o elemento vital para a vida em Santo livramento. Suas águas eram cristalinas e transparentes, podia-se ver o fundo do rio, de um gosto leve e purificante, uma benção a um povo tão agraciado. Todos bebiam dela, pois era seu reservatório permanente, era usada para todos os fins domésticos. Passou a ser um rio sagrado para todo o povo daquela imensa região.
O negócio do diabo começou a ruir, eram poucos os negócios, tentações e provações não funcionavam como antes, somente os preguiçosos que nada queriam eram vítimas do malquisto, assim também ocorreu com os negócios de dona morte, a matriz chamou-a de volta e mandou para Israel e Palestina onde morre gente quase todo dia, mas o ex-comerciante de almas tinha empresa aberta, era dono do negócio e ultimamente não fazia para as dividas, não demorou muito a pedir concordata, anos depois se mudou para um subterrâneo de terceira, pediu auxilio as forças das trevas, mas solidariedade é coisa que não se pode esperar em meio tão energúmeno e por fim acabou se tornando pedinte na rua. É sempre visto com um litro de cachaça comprada com esmolas dadas pelo próspero sertanejo.
Dona morte quando veio visitar Santo Livramento encontrou o diabo que a cobrou.
- Pois é comadre quando pedi sua intervenção você não me atendeu e olha aí a desgraceira.
Afirmativa dona morte respondeu:
- Sempre fui funcionária exemplar, nunca atentei contra a ética, mas ainda tem doce no fundo do tacho aqui, vez ou outra.
O diabo incompreensivo resmungou:
- Os humanos não gostam de mim e nem de você, estamos no mesmo nível para eles.
- Os humanos não me compreendem, culpam-me por separá-los de entes queridos, tem medo da morte, mas perdem o tempo precioso da sua vida com coisas que não valem à pena, tais como ganhar dinheiro a qualquer preço e trabalhando sem tempo para aproveitar seu rico dinheirinho, mas compreendo-os e não os culpo. Nessa freguesia tenho vindo muito pouco é verdade e por você nada posso...
O diabo nem esperou dona morte terminar, deixou-a falando sozinha outra vez. Os tempos mudariam tudo que sobe desce, existe o tempo das vacas gordas e das vacas magras, mas uma coisa era certa, ele dependia do livre arbítrio do homem e não demoraria muito para as coisas voltarem a ser como eram.
O ILUMINADO
Foi registrado como Diego Santo, mas todos se referiam a ele como O iluminado, com o tempo ficou só iluminado, embora muitos o chamassem de predestinado, outros de enviado, abençoado, entre tantos outros. Filho de Santa Inocência e Adão Santo, no nome poderíamos já saber de antemão que aquela família estava predestinada a algum tipo de santidade.
Embora fosse criança abençoada que representava coisas tão importantes que eram a esperança e a fé, não teve criação diferenciada de Dioguinho e Dionatas seus dois imãos mais velhos, eles tinham uma predileção pelo irmão. Levavam o irmãozinho recém nascido para a roça em um carrinho construído por Seu Adão, cuidavam dele enquanto os pais trabalhavam e cuidavam dele direitinho. O menino cresceu igual aos demais e de nada foi privado, mas também de nada privilegiado, sua mãe se orgulhava e amava igualmente todos os seus filhos, não fazia distinção de nenhum, era analfabeta, mas gostava do espírito de humildade e igualdade, gostaria de ver na sua família o que ela não conseguia enxergar no mundo, união, solidariedade, respeito, igualdade e paz.
Queria fazer do seu lar seu universo, lá fora era outra coisa, pelo menos em sua casa gostaria de fazer com que as coisas fossem diferentes. Sempre corrigiu seus filhos, sempre foi exemplo para eles também. Ela e seu adão eram a referência dos três, Diogo, Dionatas e Diego. Inocência teve uma paixão arrebatadora na vida, mas era um homem muito cobiçado por todas as mulheres, parecia ator de cinema, gostava também muito dela, mas não conseguia ser homem de uma só. Seu ego era grande demais, um dia perceberia a realidade do mundo, mas ela não estava disposta a esperar. Tinha muitas amigas que se entregavam a essas paixões, puras ilusões, o príncipe virava sapo rapidinho, muitas vezes, abandonadas com os filhos pequenos ou atraiçoadamente caladas e reverentes. Adão era o outro pretendente que não tinha o charme do galã, mas que era sincero e a amava realmente, homem distinto e companheiro, capaz de muitas delicadezas, até suportar seu gênio difícil e suas inseguranças, mas de lhe dizer umas verdades também, pois ninguém está certo todo o tempo. Então se casaram.
O menino era somente tratado com distinção na comemoração do dia da grande tempestade que era o mesmo de seu nascimento. Deus enviou o menino como um sinal do fim da provação do sertanejo e símbolo da fé e da esperança, mas deus foi tão generoso que não quis que o sertanejo estivesse ali em romaria todos os dias da semana, então o dia de comemoração da grande tempestade era a oportunidade que todos tinham para vê-lo e para se nutrirem de fé e esperança, então vinha gente de toda a região, até turista estrangeiro. Santo Livramento vivia abarrotada de gente, todos se espremendo, aproximadamente umas quinhentas mil pessoas, alguns dormem no relento mesmo, pois Deus nesse dia pede para o departamento de águas do céu fechar as torneiras.
A celebração é ecumênica reúne todos de todas as religiões, é simples, todos oram o Pai Nosso com o predestinado e todos podiam jurar que sentiam a mão do pai sobre vossas cabeças, todos saiam dali com uma grande alegria e desejo de abraçar a vida, muitos sentiam tanta alegria que começavam a chorar, revitalizados acreditavam tudo poder enfrentar em vossas vidas, todos passavam a acreditar que poderiam lutar resistir e transformar o mundo concertar o que está errado, a oração começava pontualmente às onze horas da manhã do terceiro domingo do mês de janeiro de cada ano.
O sistema não vê com bons olhos essa festa, pois ela representa a subversão à ordem democrática, pois as pessoas saem da celebração muito dispostas a transformar sua realidade, assim dificulta o controle social, o pior é que as pessoas fazem isso de uma forma que não dá nem para criminalizar, mostrar os podres, pois não tem o que criticar, pois suas reivindicações e a forma de reivindicar são justíssimas. O sistema pensava em uma forma de estender seus tentáculos àquele lugarejo, eram especialistas nisso.
Nos seus dezesseis anos o iluminado se apaixonou por Maria das Graças e ela por ele, tiveram aquele desejo incontrolável, um pelo outro, ao final da aula sempre desapareciam, foi a partir daí que o povo começou a se decepcionar um pouquinho, pois em seu conceito moral tamanha santidade não pode se perder em tamanha vulgaridade, mas ele era um garoto e em sua sabedoria sabia que jamais poderia agradar persas e espartanos. Ele era antes de tudo humano e não seria perfeito, seu pai celestial aprovava seu ato, pois viu o que fizeram com Jesus transformando-lhe em um ser casto, coisa que ele nunca foi. Então bastava, não adiantava fazer dele algo que não era, tratava-se apenas de dois jovens se descobrindo na idade que seus corpos permitiam e não se culpou por isso. Foi até a casa da moça e seu pai fez gosto, então era assunto resolvido, mas o namoro não durou tanto, pois é a vida com as decepções e desilusões, coisas que fazem parte, a vida é um rio e tudo passa e valeu como grande experiência, cada um no seu canto.
O povo é assim. Cria uma armadura para as pessoas vestirem e não sabem que as imperfeições, assim como o errar, fazem parte das pessoas. Eles sempre querem alguém melhor que eles, algo que não é desse mundo e quando alguém tido como divino mostra traços de humanidade, ao invés de se sentirem próximos deles, afastam-se e consideram uma quebra de santidade, jamais pensam que os santos são capazes de cometer atos parecidos com os seus. Se compreendessem isso seriam mais humanos.
Com os seus dezenove o iluminado se interessava por tudo que envolvia sua comunidade, inclusive política. Esse foi outro ponto em que o povo não gostou. Como santidade se envolve na política? Sabia o rapaz que a política é coisa fundamental, assim como a fé e que a política estava presente na vida de todos, mais do que supunham. Fé e política eram irmãs, o ato de fé é um ato político. A política do Iluminado não era aquela feita na Câmara dos Vereadores e na Prefeitura, mas trabalhar, namorar, casar, viver eram atos políticos. Outra coisa que começou a aborrecer a todos foi o ecumenismo do predestinado, muitos diziam que ele ficava em cima do muro, pois cada um considerava a sua religião a certa, assim muitos passaram a desaprová-lo, diziam:
- Isso que disse o iluminado que todos os caminhos levam a deus não é verdade. Só a minha religião leva realmente a verdade.
Sobre isso dizia o iluminado que a divisão entre religiões enfraqueceria o espírito, era preciso unidade respeitando as diferenças entre cada religião, mas todos unidos no amor, pois deus é amor. A sua missão era unir a todos em torno da fé e elevação do espírito, gerando atos positivos baseados na luta do povo e na transformação do mundo em um lugar melhor para todos onde o homem esteja integrado à natureza, a si mesmo. Embora soubessem que ele sempre fazia à vontade de seus pais terrenos e do pai celestial muitos não concordavam, o que nos faz pensar que deus é mais uma criação ideal da cabeça do povo. O fato é que sua popularidade dia a dia reduzia.
A CIDADE
A cidade ficava na beira do rio da fé. Era pequenina, cercada pela vegetação, situada entre as montanhas e o rio e suas casinhas pintadas com cores vivas, um verde, um amarelo, um roxo. Há cinco anos foi inaugurada uma praça central. Lá a cidade se reúne para as festas, para os comícios. Todo sábado e domingo à tarde ou à noite o lazer era dar uma volta na praça, ficar por ali encontrando as pessoas e conversando em pequenos grupinhos, alguns no bar outros na lanchonete. Ali foi inaugurada recentemente mais uma filial das casas Bahia, já funcionava uma agência do Branco do Brasil, construíam um shopping Center e a prefeitura já negociava com uma grande rede de hiper-mercados.
Suas ruas que antes eram de terra, agora são de paralelepípedos com guia e também direito à calcada. O novo padre, Aníbal, diziam ser comunista e não dava muita atenção às beatas, mas sim aos pobres por meio de obras assistências da paróquia. Já o pastor evangélico, Gerônimo, era casado e tinha três filhos, homem que tinha, há muito tempo, livrado-se das drogas e dedicado com fé à missão que deus lhe deu: levar a todos à casa do senhor e que ali encontrassem o caminho da salvação e preparassem suas almas para o final dos tempos. Na cidade tinha cinema e todos ficavam impressionados com os efeitos especiais dos filmes hollywoodianos, tinha também farmácia, posto de saúde, biblioteca e escola. Todo dia 10 de janeiro comemoravam o aniversário da Grande Tempestade, esse é considerado o dia do renascimento, o prefeito há muito tinha declarado esse dia como feriado municipal.
O sertão cada vez mais prosperava, as cidades recebiam levas de gente, o comércio perto do natal abria até as dez da noite, bancos abriam filiais ali. Todos tinham empregos e o empresariado local começava a defender a criação de indústrias na região. Desde a grande tempestade a sociedade em Santo Livramento se articulava. No começo não sentia os velhos vícios, mas agora ela estava se organizando segundo os moldes do sistema capitalista, pois a pobreza, a injustiça começava a dar sinais visíveis. Aos poucos uma frieza começava a atingir a cidade e não era a frieza do inverno. As pessoas estavam muito ocupadas em ganhar dinheiro, começava um esboço de miséria, começava até uma favela que agregava novos barracos a cada dia. Esses eram os primeiros sinais de que uma mudança negativa estava em curso. Receberam até a visita de alguns empresários da área química que tinham grandes planos, montariam ali uma fábrica de inseticidas, mas o problema era onde despejar seus dejetos, então alguém respondeu prontamente.
- No rio da fé, claro.
A notícia teve as suas repercussões, o lorde das trevas a recebeu com alegria. A veia que nutria a cidade seria poluída, isso causaria doenças. A fábrica de inseticidas pagaria baixíssimos salários com uma grande jornada de trabalho envolvendo mulheres e crianças, além de tudo, as chaminés poluiriam toda a cidade causando doenças respiratórias, os homens competiriam entre si, isso causaria a inveja e a discórdia, as matérias-primas do demo.
Por outro lado, nosso iluminado, já homem feito, encontrava-se preocupado, leu Karl Marx, O manifesto do partido comunista e O Capital para entender como funcionava a exploração capitalista e pediu a ajuda dos ambientalistas que não o levaram muito a sério. Disseram para ele que o correto a fazer era ir aos jornais das grandes cidades denunciar tudo aquilo. O isolamento geográfico de Santo Livramento e o fato de não constar nem no mapa do Brasil fazia com que empresários instalassem suas empresas ali. Fiscalização quase nenhuma e os incentivos eram muitos, aliás, era disso que os empresários do ramo de inseticidas se aproveitavam, pois um produto altamente tóxico sofreria muitas restrições, deveria seguir a legislação ambiental, etc. Em Santo Livramento poderiam correr soltos. Como chegar lá? A cidade não se encontra nem no mapa. E como então chegaram ali. Sabe como é capitalista, esperto, tem suas fontes e não as divulgam.
Era difícil para Diego denunciar a fábrica, pois a imprensa não tinha interesse, não daria IBOPE, tem que dar IBOPE para vender jornal. Nem sabem como chegar a Santo Livramento. Oficialmente a cidade não existia. Como isso? É simples e rápido explicar. As pessoas da cidade de São Paulo acham que cidades como Piracicaba e Ribeirão Preto no Estado de São Paulo são cidadezinhas atrasadas, caipiras do “interiorzinho” e não grandes cidades altamente urbanizadas. Imagine então o que pensariam de Santo Livramento.
Outra notícia importante para o filho do demo veio através de um e-mail enviado por dona morte. Dizia ela que seus superiores enviavam uma lista com os presuntos dos próximos três meses, a lista cadaveral trimestral, e adivinhem quem estava na dita lista? Pois é, o iluminado. Então logo pensou o macomunado que haveria de fazê-lo ir dessa para uma melhor. Com o iluminado fora do caminho estaria removido o único grande obstáculo à fábrica.
O iluminado já de volta da capital, frustrados os pedidos de ajuda, sabia que a questão dependia de si. Na quarta-feira fez uma convocação geral a todos os cidadãos. Na sexta às 19:00, local: Praça Central. Todos estavam lá no dia e hora combinados e querendo saber qual o motivo de chamado tão urgente. Os comerciantes que já tinham fechado o comércio foram para lá direto, as aulas noturnas da escola foram suspensas, todos deixaram de assistir a novela das sete, as pessoas iam chegando de todos os cantos e em alguns minutos a praça já estava abarrotada de gente e não esperaram muito não, pontualmente, ele, atravessou a multidão que aguardava suas palavras. Subiu no coreto e disse:
- Minha gente de Santo Livramento meu nascimento trouxe água pro sertão fui uma dádiva de deus ao homem, vejo no mundo cada vez mais desenvolvido os computadores, todo tipo de eletrônica e digital, tanta tecnologia, inclusive assistência aos enfermos com pesquisas avançadíssimas, cérebros eletrônicos, pesquisa genética, mas também bomba atômica, poluição e a conseqüência? Aumento da temperatura do planeta, poluição no mar e nos rios, se alguma vez no mundo o homem esteve perto da destruição foi nesse século XX o homem esteve à beira da destruição total quando inventaram a bomba atômica e este mal não está de todo afastado, hoje as cidades cresceram e comprimem as pessoas que vivem estressadas, deprimidas, competindo entre si, pensam em ganhar, em concorrer e esquecem de si e de todos ao seu redor, todos parecem que estão perdendo a fé. Santo Livramento é uma das cidades que mais crescem no sertão nordestino e deve ser bom, mas devemos crescer respeitando as pessoas. O progresso material tem que ser para todos e não para alguns. A fábrica impossibilitaria um futuro para todos. Traria o capitalismo selvagem, onde poucos ganham dinheiro a despeito da qualidade da água e do ar. Existe uma informação de que o pessoal da fábrica de inseticidas pretende jogar seus dejetos no nosso rio da fé e isto é tolerável? Todos aceitariam isso? Quais as conseqüências para a cidade? Realmente boas?
Todos ficaram em silêncio, o que disse o iluminado frustrou as expectativas do povão em arrumar um emprego na fábrica. Todos refletiam sobre as conseqüências da instalação da fábrica de inseticidas, mas todos queriam na verdade mais que barriga cheia, poder ir ao shopping aproveitar as promoções, também era verdade que o desemprego aumentava a cada dia, mas os argumentos do predestinado eram irrefutáveis e eles não tinham coragem para se opor ou dizer sinceramente o que pensavam a respeito, nunca, pois as palavras dele expressavam a vontade deus. Agiram até com muita falsidade, pois em cima do coreto Diego poderia jurar que o povo estava concordando com ele.
Na verdade, o iluminado perdia sua capacidade de influência a cada dia, embora fosse ainda, para muitos, uma referência, pois as palavras de deus saíam de sua boca e elas nem sempre falavam o que o povo queria ouvir, muitas vezes era mais conveniente não escutar ou se alienar sobre o que dizia, fazer-se de desentendido, contrariando o dito popular que a voz do povo é a voz de deus. Momentaneamente, o discurso do iluminado fez com que o povo se posicionasse contra a fábrica. Ninguém tinha coragem de se opor, não tinham como refutar aqueles argumentos.
Tal posição contrariava interesses como os do prefeito Homero Junqueira. Candidato a deputado estadual que enxergava na fábrica uma oportunidade para a se eleger deputado estadual quando terminasse o seu segundo mandato, pois a cidade já estava sendo uma das mais importantes daquelas bandas e uma fábrica a consolidaria como pólo sub-regional, além disso, o mais importante e decisivo, os representantes da fábrica no Brasil já tinham confirmado que bancariam sua eleição se instalassem uma filial ali.
A BURGUESIA LIVRAMENTENSE
A boa sociedade livramentense começa a despontar. Ela é composta por comerciantes, empresários locais, advogados, médicos, profissionais liberais, a classe política e membros do judiciário. Começaram a se aglutinar após a fundação Country Club de Santo Livramento que tem sua sede urbana com seu imenso salão de festas e também campestre onde tem uma pista para corrida de cavalos na qual a elite da cidade vai aos domingos à tarde. Ultimamente passou a ser tradição a viagem a Nova York das meninas que completam seus quinze aninhos. Lá ganham um banho de “civilização”. Elas voltam sempre americanizadissimas, encantadas como país do norte, aquilo lá sim que é civilização. Coitadinhas!! Ter que conviver ali, naquele lugar entre os bárbaros e a barbaridade, mas deixariam claro em seus novos hábitos que até dividiriam o mesmo espaço, mas que eram “civilizadas” meninas de relevo naquele fim de mundo.
Lá não tinha televisão a cabo ainda, então o que muitos faziam era pedir para alguém, talvez um parente, gravar os principais programas vistos em São Paulo e mandar quase diariamente pelo correio. O novo shopping Center era o refúgio desses novos senhores. O cinema não trazia todos os filmes, eram filmes que já estavam fora de cartaz há três meses aproximadamente, mas lá era só a burguesia que ia ao cinema, o pobre nem imaginava.
Muitos desses, bem depois que cresceram economicamente se distanciaram do iluminado passaram a ter outras preocupações, exemplo, onde investir seu dinheiro, qual a melhor aplicação e coisas do tipo, mas freqüentavam a igreja principalmente nas semanas mais lucrativas. Os calvinistas acreditavam que os senhores do lucro são os eleitos de deus. Relacionavam a igreja aos lucros, era também para aliviar seus pecados, pois capitalista que é capitalista lucra através da exploração alheia.
Para eles as pessoas valiam por aquilo que tinham de material, a riqueza espiritual não preenchia mais suas expectativas, inclusive começaram a ter nojo do povão e das sandálias “pobres” do iluminado. Começaram a duvidar também de sua santidade, começaram a vê-lo com desdém e até mesmo chegavam a dizer, quando se encontravam nos churrascos ou nas festas sociais, depois de muito álcool, diziam o seguinte:
- imaginem alguém tão santificado vivendo de forma tão simples. Imaginem! Se eu fosse o iluminado, estaria ainda mais rico.
À BALA
Aqueles que se revoltam são tidos como loucos. Foi o que aconteceu com Calígula, pois queriam interná-lo num sanatório por ler demais e dizer coisas sem sentido. Ninguém entendia o que ele falava, muito menos seus alunos, nem sua família. O que esperar de uma sociedade onde ninguém lê e nem raciocina, quem dera tivessem capacidade de elaborar uma crítica, ou tecer uma opinião. Coisa rara! Aconselharam-no, disseram que precisava marcar uma consulta no psicólogo e não demorou ao constatarem que seu caso era para psiquiatria. Ele chegou a acreditar que era isso mesmo, que estava enlouquecendo, mas perguntava o que o psiquiatra entendia de Ciência Políticas e Filosofia, pois só ficaria convencido se o doutor o derrotasse pelo menos nesses dois campos.
Foi até o psiquiatra, mas antes de conversar com ele observou que o consultório parecia uma seção da burocracia. Na frente do psiquiatra disse tudo que o afligia. Falou do decesso da profissão e o fato de que quanto mais estudava menos as pessoas o entendiam. Contou tudo ao profissional na esperança de ser compreendido. O Sr. Dr. Ficou caladíssimo e só escrevia breves notas no prontuário e não demorou muito a dispensá-lo, em seguida escreveu:
PACIENTE COM PROPENSÃO À DEPRESSÃO, ALTO NÍVEL DE INSSOCIABILIDADE, CONFUSÃO MENTAL, VERBORRAGIA CLÁSSICA, TRAÇOS NÍTIDOS DE PSICOSE. CASO PARA IMEDIATA INTERNAÇÃO.
Com esse diagnóstico Calígula foi obrigado a se afastar indefinidamente do serviço público, seu mundo se decompunha pela força de uma caneta. A família já estava planejando um meio de interná-lo.
No dia marcado para a sua internação tinha preparado a cama, nas primeiras horas lendo Michel Foucault e bebendo o café que tinha preparado. O banho que já tinha tomado e vestido a roupa que ele mesmo havia passado, do outro lado da mesa estava o revolver carregado. Em breves momentos pensou que pudesse ser paranóia dele o fato de entrarem na sua casa, mas sabe como é o sistema..., então estava pronto para a reação. Aquele era um momento culminante na sua vida, de maneira legal o sistema queria sedá-lo, calá-lo, transformá-lo em um girassol. Haveria de lutar por sua vida. Estavam colocando um homem contra a parede, imobilizariam sua consciência se não fizesse nada, então a maneira de sobreviver seria o underground, o submundo igual ao dos ratos. Que o fosse! Estava determinado, sabia muito bem disso, seria clandestino e subversivo.
Na poltrona do quarto os esperava. Poderiam chegar a qualquer momento e não queria ser pego desprevenido. Havia colocado na porta um sininho para que dobrasse quando ela fosse aberta e de repente o sino dobrou, eram eles. Para chegar até ele teriam que atravessar a grande sala e um longo corredor que acabaria no quarto onde estava Professor Calígula. Ele havia colocado a poltrona ao lado do guarda roupa embutido, assim teria uma visão completa do corredor, deixou as janelas fechadas para que o quarto permanecesse escuro, a única luz era a da tevê ligada. Quem vinha do corredor não podia enxergar quase nada dentro do quarto, os homens do sanatório já ficaram desconfiados quando o sininho dobrou e começaram a ficar com medo, mas prosseguiram, ao entrar no corredor escutaram o som da televisão, mas podiam ver do corredor que alguém estava sentado numa poltrona dentro do quarto, desconfiados e assustados com imagem tão estranha, os homens perguntaram:
- Prof. Calígula é o senhor?
Ele não respondeu, esperou que se aproximassem ainda mais e quando já tinham atravessado mais da metade do corredor, de repente, um, dois, três estampidos, os dois primeiros homens foram atingidos, o terceiro que estava mais atrás correu e quando estava chegando ao final do corredor e ganhando a sala um último estampido atingiu um de seus pulmões, seu corpo ficou estendido entre o corredor e a sala. Calígula então levantou, pegou a mochila que tinha arrumado há mais de dois dias e colocou-a, ainda com o revólver na mão, saiu do quarto desviando dos homens caídos no chão, passou pelo último e saiu do apartamento, pegou o elevador, na portaria não tinha ninguém, talvez o porteiro tivesse corrido Dalí, foi para a garagem, pegou a moto com tanque cheio, passou sem ser notado pelo motorista da ambulância e ganhou o mundo.
A exclusão fez com que Calígula se sentisse cada dia mais ressentido, sua magoa transbordou, envenenou-o. Agora era tudo ou nada. Para sobreviver começou a praticar de crimes e seqüestros relâmpagos em caixas eletrônicos e assaltos em geral, quando a cerco apertou foi para o nordeste e se embrenhou na Caatinga, entrava nas vicinais, roubava toda a propriedade que encontrava pelo caminho, aproveitava-se do descaso das autoridades com a segurança. Pelo caminho encontrou muitos como ele, assim formou um bando, apropriou-se da imagem de lampião e atualizou-a, seriam cangaceiros motorizados com HARLEY DAVIDSON todas fora da lei, jamais pagaram IPVA, seu mecânico era o Barba, dono de um desmanche.
O bando contava com MOONDOG, um ex-caminhoneiro que entrou no mundo do crime depois que o frete e o pedágio acabaram com a sua profissão. Tinha começado a vida de caminhoneiro desde pequeno quando viajava com seu pai, praticamente na indigência, depois de trabalhar uma vida inteira e as condições cada vez mais insuportáveis à profissão ameaçavam a jogá-lo na indigência, numa situação pior que a do seu pai, mas não foi isso que determinou sua vida bandida. Seu pseudônimo se devia ao fato de ser fã da banda de rock GOLPE DE ESTADO e sua música preferida era MOONDOG.
Precisava rodar muito para ganhar alguma coisa, algumas vezes ficou dirigindo 48 horas, ininterruptamente, sempre movido por rebite. Um dia desses pegou no sono em pleno volante, o caminhão desgovernado por segundos fatais invadiu o outro lado da pista e bateu em cheio num ônibus cheio de jovens estudantes que faziam uma excursão. Acusaram-no de assassino cruel quiseram linchá-lo, o cara do jornal disse que isso acontece por que não temos pena de morte e os direitos humanos que protegiam os monstros como ele.
Prenderam-no, quisera comparecer no enterro, pedir perdão, fazer alguma coisa pelas famílias, mas estava preso. Tentou explicar os fatores de sua vida que o fizeram dormir ao volante, mas não teve perdão, depois de um tempo pensou que era preciso esquecer para seguir em frente, pois quase conseguiram fazê-lo se sentir culpado, imputando somente a ele toda a culpa, pensava que se sua morte restaurasse a vida daqueles jovens, certamente daria a sua em troca, mas era impossível. Sua vida legal transformou-se num inferno. Então não teve saída e se tornou um foragido, pois sabia que se vivesse legalmente alguém faria dele caveira, um dia seria, mas hoje não.
No grupo tinha também ZUMBI que entrou para o bando depois que ficou preso um ano após roubar uma bolacha de um supermercado para dar a seu filho comer, pois estava chorando com fome e aquele homem humilhado não hesitou e foi pego. Sua mulher se separou dele e nunca foi visitá-lo na prisão, quando saiu vagava indigente, morador de rua e cheirava cola, o bando o livrou das drogas, deu roupa, alimento e o mais importante dignidade.
O índio TUPINAMBÁ era outro membro que foi espancado por policiais na comemoração dos 500 anos do descobrimento do Brasil, outros tentaram queimá-lo com álcool e sua sorte é que bem na hora caiu um toró de chuva que molhou a caixa de fósforos dos playboys. Pura sorte! Estava cansado de tomar cachaça e quando tentou se curar apegando-se a bíblia e freqüentando as reuniões da igreja sentia um aperto no peito, estava deslocado, pois não se sentia índio, mas também não se sentia homem branco. Pensava em suicídio o tempo todo, mas isso era mais difícil que imaginava, estava indo para a terceira tentativa quando se voltou para o cangaço.
No grupo se sentiu bem, mesmo à margem da lei, coisa que não sentia quando não era um homem, mas um índio que tinha que enfrentar a aniquilação do seu povo com um sorriso no rosto, o bom selvagem. No grupo tinha um norte que era viver, mesmo que à margem da lei, mas seria vida, mesmo que estivesse à margem, pois antes não era ser social, mas um morto vivo social, agora não vive de fato e está no lucro por que quantos tiveram o que está tendo, a maioria das pessoas são mortos vivos sociais e vivem pensando que são livres e não são. Todos do grupo pensavam mais ou menos assim.
Todos ali tinham histórias parecidas. Pessoas que entraram à margem da sociedade para viver livremente, mesmo que fosse curto, mas o Estado haveria de sentir os reflexos de tudo aquilo. Aproximaram-se do mal e se distanciaram do que diziam serem as algemas da religião, nem quiseram também parecer bons. Com o tempo embruteceram, desumanizaram-se, eram ódio, magoa, rancor e colocariam tudo a perder, essa seria sua revolução. Calígula, que já ouvira falar do iluminado, o considerava uma figura ingênua e que não conhecia os homens que só pensavam no vil metal. A esperança para ele estava apenas insepulta, ele jogava pérola aos porcos. Para ele o iluminado turvava as coisas, criava uma alternativa à sua tese, não existe democracia, nem liberdade de opinião.
O mundo era selvagem, controlado pela indústria petrolífera e bélica, sua saída era radical, assim o iluminado representava um grande obstáculo, pois se a população tivesse esperança não veria mais o cangaço como uma alternativa. Calígula era o fundador, líder e o cérebro dos cangaceiros, tinha lido as principais interpretações sobre o Brasil como Revolução burguesa no Brasil de Florestan Fernandes, Os donos do poder de Raimundo Faoro, Raízes do Brasil de Sergio Buarque de Hollanda, Formação econômica do Brasil de Celso Furtado e outros não menos importantes e sabia que no Brasil as questões sociais sempre foram solucionadas à bala como Canudos, Contestado, Balaiada, Cabanagem, Malês, Araguaia, Eldorado dos Carajás.
Sabia que no Brasil o povo de fato nunca assumiu uma posição a favor dos movimentos e revoltas populares, muito ao contrário, sempre delataram ou até mesmo ficaram observando e seus únicos músculos em movimento eram os dos braços que se cruzavam e em outros casos calados ou indiferentes ao que se passava e não seria agora que o povo se posicionaria. Eles não confiavam no povo, embora o povo tivesse medo do cangaço sabiam que se o grupo ficasse em posição vulnerável poderiam até ser linchados por eles. A força dos novos cangaceiros vinha das armas, assim como entendia Karl Marx, elas eram o instrumento concreto para a revolução. A fé não traria a mudança, assim Calígula reproduzia:
- “A religião é o ópio do povo”.
Para ele o Brasil não tinha povo no sentido mais verdadeiro e histórico do termo. Reproduzia também o dito:
- No Brasil não temos povo, temos platéia.
A TRAIÇÃO
O gerente designado pela matriz era John MacDonald, jovem recém - formado em administração de empresas por conhecida universidade norte americana e seu pai era diretor da sede nacional, Santo Livramento representava um teste inicial, um trampolim na carreira que se iniciava. Era alcaholic, respirava e transpirava trabalho, não era nem casado, nem tinha namorada, tempo para ele era dinheiro, então não perderia tempo com esse tipo de coisa, era uma máquina, assim trabalhava de segunda a segunda, seus objetivos eram o sucesso e o lucro. A sede comprou a maior casa do centro da cidade que era a casa do finado coronel Bento Calixto Prata, lá seria o seu quartel-general, vieram consigo dois lobistas profissionais, Edward Irving e Justin Turner, que falavam muito bem o português como John. Eles faziam festas que tinham entre os convidados a alta cúpula do poder do município como vereadores, promotores e juízes, também comerciantes e formadores de opinião como professores e jornalistas. Irving e Turner davam presentes para todos que freqüentavam o local, todo tipo de adulação, por esse motivo eram sempre bem recebidos em todas as esferas do município.
Somente se opunham as autoridades religiosas: católicas e evangélicas. Os norte-americanos sabiam que na cidade tinha gente que poderia barrar seus esforços, no caso o iluminado que era reconhecido pelos bispos católicos e evangélicos, tinha até menção do papa e tudo indicava que um dia poderia ser santo. Os evangélicos o consideravam um milagre de deus, essa era a façanha do iluminado, acabar com as diferenças entre evangélicos e católicos, pois todos eram filhos do pai que habita os céus e todos os caminhos levam a deus. Embora divergentes, havia respeito e a divisão dos fiéis se baseava, como acontece e sempre aconteceu, na convicção de cada um deles. Uns achavam melhor o culto evangélico, outros a missa católica, tinha até aqueles que freqüentavam as duas, era o caso do iluminado e quando ia gostava de sentar na primeira fileira, não por deferência, mas por preferência, pois assim prestava mais atenção.
Depois do discurso do iluminado, os responsáveis pela fábrica de inseticidas não mais encontravam quem estivesse disposto a trabalhar na fábrica. A saída Foi construir uma vila operária e atrair trabalhadores de outras regiões. Esse bairro operário iria se tornar uma das primeiras favelas da cidade, na verdade sub - empregaram aquela gente que aos poucos se tornava um grupo de esfomeados e suas crianças estavam ali, em contato com o esgoto a céu aberto, enfermidades infantis, coisa rotineira.
O iluminado era um obstáculo que muitos queriam remover, era o elo que mantinha a cidade com seus princípios e virtudes, mas se fosse descartado, avançariam as forças funestas, todo tipo de desvirtuamento, toda ambição e desigualdade, toda miséria disfarçada de progresso. O capeta entrou em contato com Incubus, era seu subordinado mais leal, diante de uma vantagem prometida pelo ex-chefe poderia ajudar a eliminar o predestinado, não sabia ao certo onde se encontrava, mas não demorou muito para achá-lo, vivia no submundo, era estuprador procurado e conhecia muito bem os esgotos e muita gente lhe devia favor, tinha contatos na polícia, por isto sempre era avisado quando o cerco se fechava, mas seus contatos eram vastíssimos e muita gente lhe devia favor. O diablo queria dele a indicação de um pistoleiro de perfeita pontaria. Incubus indicou aquele a quem chamavam de Chacal, cara sangrento que não era o mais famoso, em compensação jamais alguém escapou dele, tinha 100% de aproveitamento.
Calígula e o iluminado representavam duas vertentes distintas, duas correntes inconciliáveis, duas vidas opostas, tinham em comum a sede pela transformação do mundo a começar por aquele infinito sertão que virou mar, embora seus métodos fossem radicalmente opostos, o primeiro acreditava que as armas eram uma condição concreta para a mudança e desconfiava do povo, o segundo acreditava que a fé inundaria o coração dos homens que lutariam e mudariam o mundo e acreditava no povo. O líder dos cangaceiros estava perdido demais para construir uma bela sociedade, a transformação passou a ser por outro lado apenas uma idéia fixa e se parasse para raciocinar veria que não tinha mais razão, na verdade queria botar fogo no mundo para ver se curava sua raiva, mas curtido nela não podia ver que Santo Livramento estava vivendo um momento crucial, de definições, pois havia duas correntes; aqueles que se diziam progressistas, defensores da instalação da fábrica de inseticidas, mas na verdade desejava aumentar seus lucros e projetarem suas carreiras, a outra corrente contrária desejava uma sociedade mais fraterna baseada no desenvolvimento social as quais a fábrica representaria uma ameaça.
Havia um grupo de cidadãos que lá na praça não quiseram mostrar sua cara e expor seu ponto de vista, mas que não concordava com o iluminado. Esses estavam miseráveis, recusado o trabalho na fábrica pelo discurso do iluminado, mas as conseqüências disso não eram boas, a fábrica havia buscado uma solução alternativa, buscaram trabalhadores de fora, o bairro deles era miserável, mas pelo menos tinham a ração garantida e sobrava até pra uma cachacinha, eles não, viviam de incertezas, catavam e vendiam papelão e todo tipo de material reciclável e também ferro velho. Esse era o reflexo de uma cidade que já não era boa para todos, fazia alguns anos que começou uma brutal concentração de renda, alguns ficaram muito ricos e muitos mergulharam na miséria.
O líder do sindicato dos trabalhadores da Construção Civil, Comércio e recentemente Indústria de Santo Livramento era Joaquim Silvério dos Reis, o Joaquinzão, era um ex-pedreiro que liderou os trabalhadores na construção do primeiro conjunto habitacional popular da prefeitura que estava pagando um salário de fome, por intermédio de Joaquinzão reuniram-se e paralisaram por um mês, o então prefeito o convocou para uma reunião na propôs a Joaquinzão que poderia bancar a organização de um sindicato no qual ele poderia ser o presidente e na qual teria um excelente salário, Joaquinzão topou na hora e saiu do gabinete do prefeito com a proposta de 1% de aumento. Era bom nas palavras, sempre teve o dom, poderia convencer qualquer um e convenceu os companheiros afirmando que tinham avançado com o 1% de aumento, diriam os mais sarcásticos que se caminhassem assim demoraria 25 anos para terem um aumento de 25%.
O sindicato cobrava um dia de trabalho, além do que aparecia descontado todos os meses na folha de pagamento dos trabalhadores, Joaquinzão já tinha construído uma casa grande com piscina, seu carro era do ano e alguns dias ia para o sindicato de helicóptero, não que tivesse congestionamento, mas gostava de mostrar o poder da classe trabalhadora a qual representava. Estava na lista de pagamentos de MCDONALD, recebia vultosa soma a qual repartia entre os diretores mais próximos. Na verdade ficava com 70% e rateava os 30% restantes com seus apadrinhados no sindicato.
Eles foram acionados pelos capitalistas que queriam admitir a gente de Santo Livramento para trabalhar na fábrica, pois seria interessante devido à lei de oferta e procura, no caso, se tivesse mais trabalhador que emprego isso representaria a redução ainda maior do valor dos salários pagos. Quem não quisesse aquele salário poderia se demitir, pois no mesmo instante teria, pelo menos, outros cinco para aquela vaga. Obediente, o sindicato fez uma convocação geral, dizendo que se trataria de um assunto de vital importância para a classe trabalhadora. Montaram um grande palanque na praça, o carro de som do sindicato percorreu por dois dias toda a cidade convocando os operários.
No dia e na hora a praça estava cheia, a missão de Joaquinzão era convencer os trabalhadores a não recusarem o trabalho na fábrica. Como era o primeiro a falar foi direto.
- Companheiros! Nós não podemos lutar por melhores salários se nos recusamos a trabalhar. Agora, a partir do momento que vocês forem trabalhar na fábrica, aí sim. Poderemos mudar a situação, exigiremos da fábrica salários decentes e condições de trabalho melhores, etc. Quando nos recusamos a trabalhar na fábrica, eles contratam trabalhadores de fora que ficam com o emprego que é nosso, dos trabalhadores da nossa cidade. Para mudar é preciso estar lá dentro. Inclusive exigir uma solução na questão ecológica, na melhora do ar e da água. Os trabalhadores fora da fábrica significa a perda da força do sindicato, pois o sindicato não tem ninguém para representar e como representar trabalhadores vindos de fora, eles são trabalhadores de Santo Livramento? Claro que não.
Todos estavam conscientes sobre o que representava para a cidade a fábrica, mas na verdade ninguém estava pensando na comunidade, mas no seu estomago que doía muitas vezes, o iluminado, todos sabiam, não queria que o povo se contentasse com migalhas e se unissem, já que enfrentaram coisa ainda mais triste como a seca, sempre dizia que deus ia prover o pão, mas a verdade era que o povo só não foi trabalhar na fábrica por que não tinha argumentos contra o que disse.
Uns diziam;
- Ele está coberto de razão!
Outros afirmavam:
- Não tinha o que discutir.
Muitos conformados profetizavam:
- Contra o fato não se pode lutar.
O povo não acreditava nas palavras de Joaquinzão, mas ele oferecia um argumento, uma justificativa para trabalharem na fábrica, então era assim, Joaquinzão usava o povo e o povo usava Joaquinzão. Começava então uma grande divisão na cabeça do povão e na verdade os que não se basearam nesses argumentos foram muito poucos, ali naquele momento o povo traiu, não o iluminado, mas o povo traiu a si mesmo quando Joaquinzão perguntou:
- Vou encaminhar a proposta companheiros. Quem concorda com a aceitação dos empregos oferecidos pela fábrica levantem as mãos.
A maioria mesmo sabendo que acabava ali uma oposição à poluição do ar de Santo Livramento e do rio da fé e também a oposição a uma nova filosofia de vida chamada VALE TUDO! A qual todos estavam tentados a aderir e se a minoria barulhenta adepta do iluminismo dissesse alguma coisa responderiam:
- É a democracia!
Achavam que a fábrica traria o progresso, empregos, salários, desenvolvimento para toda a região. O rio seria o de menos, apenas um preço a pagar. Pensavam que se colocassem na balança a situação chegariam à conclusão de que a fábrica traria mais vantagens. Outros diziam que era implicância do iluminado e que ele estava se desviando de sua missão. Outros ainda diziam que iluminado não sabia o que era viver sem salário já que ele vivia de luz divina. Seria mais uma desses alinhados aos ecologistas implicantes e inimigos do progresso.
A TOCAIA
Toda manhã o iluminado saia de sua casa rezar na igreja, um dia nos evangélicos, outro dia nos católicos, a caminhada matinal da fé era uma tradição que ia se perdendo aos poucos, chegou a juntar quinhentos crentes seguindo-o, mas hoje somente alguns tinham esse hábito, as pessoas estavam ocupadas demais trabalhando e cuidando de suas vidas não tinham mais a antiga disposição. No dia da tocaia não apareceu ninguém, deu até para pensar que tudo estava combinado, mas não era verdade, talvez tenha sido a perda da fé do povo que o enfraqueceu, deixando-o assim tão vulnerável. Há tempos perderam a fé no iluminado, muitos passaram a denominá-lo de forma pejorativa, chamavam-no de curandeiro, místico ou até mesmo feiticeiro, principalmente depois da implantação do hospital municipal, além disso, novas igrejas passaram a se estabelecer ali, cada uma delas passou a dizer que era “a correta”, assim passaram a achar seu ecumenismo uma coisa do espiritismo, portanto algo muito vago ou até demoníaco.
Na trilha, quando percebeu que ninguém veio, sentiu-se sozinho, uma solidão e um apertinho no fundo do coração, mas seguiu em um passo firme e não demorou muito para perceber que anjos andavam ao seu lado, não disseram nada, então, apenas prosseguiu junto de presença tão abençoada. Um certo momento pararam e um deles virou e disse:
- Nós vamos até aqui. Cumpra sua caminhada. Você está no coração do pai, em breve ele o receberá, pois está prestes a cumprir sua missão entre os seus irmãos.
Ele percebeu então que desencarnaria imediatamente, mas questionava: e a cidade? Qual é o ponto de ruptura entre ele e aquele povo, por que aquela encruzilhada? Sabia que a vida aqui era um sopro e nada temeu. Antes da cidade havia um caminho estreito por entre dois morros o ladeavam, diziam os antigos que muita gente fora surpreendida por tocaia ali, mas eram os antigos quem diziam, passara por ali inúmeras vezes e via a presença da natureza, embora naquele dia tudo estava diferente, algo estranho, não ouvia mais os pássaros e a natureza parecia que tinha se recolhido.
No lugar da tocaia o pistoleiro munido e atento, uma pedra marcava o lugar certo onde seria feito seu primeiro disparo, não gostava de render o condenado, colocá-lo ajoelhado e atender-lhe um último desejo, pois achava isso dramático demais, o melhor era um tiro certeiro, onde não daria nem tempo de raciocinar, a não ser em casos que o condenado era safado, nesses gostavam de vê-lo sangrar até a última gota e se arrepender dos pecados, esses não tinham nem último desejo, menos ainda escolher como iriam morrer, imagine? Cabra safado não tinha escolha não.
O iluminado levou um disparo certeiro no peito e não caiu, levou outro e ainda assim se manteve em pé, o atirador ia apertar outra vez o gatilho, mas hesitou e deixou-o seguir cambaleante, quase não se sustentando em pé, mas não foi longe, metros depois caiu agonizante. Estranho, mas antes de ir embora o algoz chegou perto tirando seu chapéu, talvez em sinal de respeito à vítima, acreditam? Pois era acima de tudo um profissional, nada pessoal e também para que pudesse ver quem estava matando, gostava de fitar os olhos dos despachados, uma curiosidade mórbida. A morte veio em seguida.
Os primeiros que viram o corpo sobressaltaram-se chocados, mas breves segundos depois tentavam socorrê-lo, recobrar-lhe os sentidos, mas em vão. Perguntavam quem fizera aquilo? Jamais podiam acreditar, ficaram aterrorizados, todos que passavam por ali paravam e se envolviam, aumentava o fluxo de gente sobre o cadáver. Todos indignados, mas também assustados. A multidão carregou o cadáver sobre suas cabeças e assim entraram na cidade, alguém colocou uma mesa grande em cima do coreto, colocaram seu corpo lá, deveria parecer cristo quando o tiraram da cruz.
Todos pararam o que estavam fazendo, seja ir ao banco descontar ou depositar os cheques, levar os filhos na escola, chegar pontualmente no trabalho, pegar o ônibus, abrir seu comércio, ir viajar a negócios, todos pararam e o seguiam consternados, muitos choravam inconsolados. Cada vez mais juntava gente, uma procissão se fez composta por pessoas de todos os credos e todas as crenças, todos envolvidas no mesmo martírio e cantavam, os rostos mostravam a piedade e o arrependimento daqueles que há muito não estavam ao seu lado e se esqueceram dele. Era o fim de um tempo.
A DECADÊNCIA
O velório do iluminado foi coisa mais bonita, todas as casas acenderam velas coloridas que foram colocadas nas janelas. Quem via a cidade de longe observava inúmeros pontinhos luminosos, saíram em romaria pedindo em prece que deus recebesse aquela alma tão especial, todos compareceram, até aqueles que moravam distantes, todos consternados, afetados, uns choravam, outros para descontrair contavam piadas, outros diziam que pessoa como ele não havia, nem haverá de ter, os católicos oravam Ave Maria, os evangélicos as mais variadas orações. Agora o último obstáculo ao progresso que com certeza devoraria a todos sem piedade.
Alguém gritou:
- Morreu a esperança!
No dia seguinte ainda se perguntavam quem teria feito aquilo? Só poderia ser o diablo, pois ali ninguém tinha coragem e espírito para aquilo. Borrados de medo, todos se calaram, guardaram seu choro e foram para casa se esconder, estavam em pânico. Calígula, disfarçado, viu na primeira hora do horário comercial, o povo chegando à fábrica para pedir emprego. Eram tantos na porta da fabrica a pedirem a mesma coisa que John Mc Donald resolveu imediatamente baixar os salários, pois quem não os quisesse seria demitido e substituído por outro que estivesse disposto a conviver com as mesmas migalhas. Ele pensou que o povo com medo é povo domesticado e obediente.
A partir desse fato tudo mudou em Santo Livramento. A despeito dos ecologistas o rio recebia todos os dejetos da fábrica, já não era mais o rio da fé, suas águas antes límpidas se tornaram fétidas e venenosas, as águas pretas serviam apenas para escoar pelo sertão afora o lixo químico. Antes o cheiro era insuportável, mas hoje todos se acostumaram. A água não serve mais para beber, os peixes morreram todos, as crianças apareciam com infecções, mulheres grávidas e seus fetos também eram vitimados. A fumaça da fábrica formava uma neblina tóxica que pairava sobre a cidade, o céu quase sempre não era visto, estava sempre encoberto pela fumaça e o pronto socorro, sempre cheio de gente para ser atendida, não dava conta.
O salário da fábrica não dava para comer, muito menos para vestir, as horas de trabalho aumentavam e a hora extra só beneficiava o patrão. Os fiscais do ministério do trabalho quando apareciam por lá recebiam um bom suborno ou eram mortos. As autoridades, os executivos da fábrica e até o prefeito passaram a morar no pequenino distrito de Nova Esperança cujo nome homenageava o dia da grande tempestade. Só ficava em Santo Livramento o povo.
A cidade morria lentamente, os operários tomavam no bar a pinga marvada, muitos se tornaram alcoólatras, aumentou o número de acidentes de trabalho, amputados e a desagregação familiar, as igrejas ficavam abarrotadas de gente, inclusive do lado de fora, gente pedindo uma intervenção divina sem nada fazer e aceitando calados tudo, assim deus não faz nada. Os suicídios eram muitos, os pedintes, indigentes eram tantos, drogas e prostituição, inclusive prostituição de crianças nos seus dez anos em diante. Os próprios pais as ofereciam aos caminhoneiros que paravam no AUTO POSTO TRANSNORDESTINA para abastecer, jantar e pernoitar.
O diabo que já era novamente o empresário mais rico daquelas bandas capturava todas as almas desvalidas e miseráveis de esperança e com a fé rala...fininha...associado a John Mac Donald, então, estava poderosíssimo, ele o diabo era festejado nas colunas sociais, não importava seu ramo desde que tivesse dinheiro e status. Dona morte tinha voltado depois de um tempo no Iraque, estava bem lá, mas quando a empresa: DEADS AND LIVES COMPANY ofereceu-lhe a chance de voltar, agarrou-a, pois em Santo Livramento as coisas eram mais tranqüilas, No Iraque era um inferno, as bombas a incomodavam.
Com a o iluminado morto, os membros do novo Cangaço concluíram que chegara sua vez, iria valer o poder da bala, nada desse negócio de esperança cruzando seu caminho, os meios são justificados pelo fim que se quer alcançar e pronto! Nada dessa coisa santificada e beatificada que o iluminado impunha, para eles tudo aquilo era balela, era hora de lançar o seu ódio curtido que se transformara em veneno. Calígula preparava a sua investida à fábrica. Penduraria todos os executivos de cabeça para baixo e os sangrariam até a morte.
Fizeram todos os preparativos, munição, a faca para o sangramento afiadíssima! as motos abastecidas, os coletes à prova de bala à disposição. Preparavam uma tocaia para John MacDonald que ia trabalhar de limosine, fizeram uma barreira na estrada cercaram o carro, correram com o motorista dali e tiraram MacDonald à força do carro, arrastaram-no até a árvore mais próxima. O executivo implorava por sua vida, mas Calígula insensível amarrou a corda em seus pés e jogou-a em um galho forte e puxou-a de modo que o capitalista ficasse pendurado de cabeça para baixo. Mac Donald implorava por um julgamento justo, mas Calígula respondeu:
- Aqui não tem nada disso. A lei aqui não é algo que você possa comprar.
E introduziu a faca entre o pescoço e o ombro, sangrando-o. A vítima urrava e chorava sem parar, até perder os sentidos e finalmente fazer a passagem.
Eles sabiam que a matriz poderia designar outro gerente para a fábrica, então foram para lá e fizeram o mesmo com o quadro executivo da empresa que estavam sentados à grande mesa de reuniões, esperando seu presidente. Os cangaceiros pararam a produção e deram uns tiros para o alto expulsando os trabalhadores. Ao invés de pendurar os executivos na árvore como fizeram com o chefe deles, penduraram-os nos mastros das bandeiras, tinha cinco mastros para cinco altos executivos, o numero exato, no primeiro tinha a bandeira da empresa, no segundo a bandeira dos Estados Unidos, terceiro, a bandeira de Santo Livramento, no quarto a bandeira do estado, no quinto a bandeira do país.
A Polícia foi avisada e sob o argumento de proteger as empresas para manter a ordem veio a tropa de choque, cercados os cangaceiros resistiram por dias, reforços vieram da capital para manterem a lei, a resistência ganhou manchete internacional, pois a imprensa precisava de uma história nova para render notícias e vender jornal e se convenceram de que aquela poderia chamar a atenção de todos, pois tinha muita violência, embora não tivesse nada envolvendo sexo, mas para eles tudo bem, antes isso que nada! Os jornalistas denominavam os cangaceiros de terroristas, outros diziam até que eles eram associados ao Al Qaeda e as FARC. Cercados e sem alternativa de fugirem fariam uma investida final suicida, sairiam dali atirando, derrubariam quantos pudessem antes de caírem mortos e assim o fizeram.
Quando os policiais e a mídia achavam que iam se entregar para humilhá-los publicamente, roncaram os motores de suas motos, anunciando que sairiam a qualquer momento e algo dizia para os policiais que não exatamente como pensavam. Munidos até os dentes aceleraram suas motos e quando o portão se abriu, saíram ganhando alta velocidade e os policiais começaram a atirar, com sorte o bando furaria o cerco. Com uma das mãos aceleravam suas motos com a outra disparavam suas pequenas metralhadoras automáticas que cuspiam milhares de balas por segundo. Calígula foi o primeiro a ser atingido, mas quando as balas atingiram o tambor de combustível, sua moto explodiu com ele. Os demais foram alvejados e mesmo assim continuaram a atirar, o único a furar a cerco foi zumbi, mas não foi longe, ferido de morte agonizou e morreu na beira da estrada, no KM 145 da transnordestina.
O incidente causou grande discussão sobre a questão ambiental que não estava sendo considerada por capitalistas inescrupulosos. Os ambientalistas que, no princípio, não tiveram muito interesse no caso, mudaram de idéia, pois a imprensa estava cobrindo o ”evento” e correram imediatamente para lá, disseram que o finado iluminado tinha-os avisado e já haviam preparado um grande ato contra a poluição naquela cidade, preciso fosse acionariam os órgãos federais de defesa do meio ambiente.
Depois de dois mandatos à frente do legislativo estadual o prefeito não foi mais reeleito, pois a fábrica não o financiava mais e não queria pedir apoio para o diabo, pois até colocaria seu mandato em risco, mas não sua alma. Os vereadores e os membros do poder judiciário perderam sua mamata e tiveram que se adaptar aos novos tempos, o iluminado estava feliz junto do pai celestial e em paz por ter cumprido sua missão, alcançou a plenitude que só é alcançada pelos corajosos e nobres de sentimento. Deus cessou a chuva, o sertanejo estaria melhor sem ela, pois afinal cada um tem aquilo que bem merecer. Deus ofereceu a liberdade e a oportunidade para a felicidade, mas progresso não lhe fez bem, o corrompeu e era preciso que esse homem retornasse ao seu centro. A vida estava mal em Santo Livramento, estava mais para Santo Condenamento, Cubatão de tempos atrás perderia. Um mês depois foi publicado no Diário Oficial do Céu, o seguinte:
FICA SUSPENSA POR TEMPO INDETERMINADO A CHUVA NO SERTÃO.
Poluição e seca quem haveria de aguentar? O rio poluído baixava o seu nível a cada dia, semana a semana, mês a mês até o dia em que estivesse todo seco e quanto mais o nível do rio baixava, mais era revelada a baixeza a que chegaram, pois tudo que queriam esconder jogavam no rio, todos acreditavam que suas águas envenenadas pudessem dissolver seus pecados. Lá foi encontrado até carro com esqueleto dentro, queimaram um arquivo e também armas que eram provas de crimes.
Aos poucos puderam ver o céu novamente, não tiveram novos casos de doenças respiratórias, nem intoxicação pelas águas poluídas do rio, pois não tinham rio, estava todo ceco, aos poucos os dejetos que sobraram foram engolidos pela areia. Depois de um tempo, tudo virou história contada pelos antepassados, não virou nem lenda, apenas uma lembrança que as pessoas querem esquecer e que as gerações vão sepultando pelo esquecimento. Todos continuaram a reclamar e não tomavam atitudes, jamais as tomariam. Deus atendia um pedidinho aqui outro acolá, respondia a uma suplica só para não perder o habito, mas não apostaria suas fichas em Santo Livramento e demoraria muito, muito e muito para atender algum pedido por água. Estava muito desapontado e esse desapontamento sabe lá quanto tempo duraria, pois o tempo dos deuses é muito extenso comparado ao tempo dos mortais. Um dia terão sua segunda chance? Quem sabe?
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