#A Revolução dos Cravos, Syriza, a Troika e a Ruptura da Democracia Européia (2011-2014)


Para Bobbio (1998, p. 319) a democracia clássica é definida como Governo do povo, de todos os cidadãos, ou seja, de todos aqueles que gozam dos direitos de cidadania, se distingue da monarquia, como Governo de um só, e da aristocracia, como Governo de poucos. Se a democracia é o governo de todos os cidadãos, imaginamos que todos eles devem opinar e decidir conjuntamente seu destino, mas não é o que parece estar ocorrendo entre os países da Zona do Euro. Nosso intuito neste artigo é verificar a ocorrência de um intervalo democrático na Europa nos anos que se referem à crise econômica mundial (2011-2015). Para tanto analisamos brevemente o caso de dois países, Portugal e Grécia, países periféricos da Zona do Euro.
O aprofundamento da crise fez com que os governos de Portugal e Grécia recorressem à ajuda financeira do Banco Central Europeu e do Fundo Monetário Internacional (troika), em contrapartida estas instituições impuseram medidas que representaram um arrocho social sem precedentes desde a formação da Comunidade Europeia, nos anos 80. Essas medidas compreenderam cortes em gastos sociais e salários, aumento dos juros e demissões em massa. No momento de crise a participação decisória do povo foi vetada pela troika, no caso do plebiscito grego, o governo foi ameaçado de sofrer sanções severas pelos mandatários europeus.
Todos os países que precisaram de ajuda tiveram que admitir à dieta econômica imposta pela troika, a despeito do que o povo queria, assim surgiram protestos populares em massa, governos caíram, as contestações cresceram e já resultaram em vitórias eleitorais dos grupos políticos de esquerda que se opõem às medidas impositivas da troika. É o caso da vitória do partido de esquerda grego chamado Syriza. Este artigo pretende analisar a ocorrência de uma interrupção da democracia De fato na Europa nos anos posteriores à crise de 2008. Sobretudo verificar se existe o prevalecimento dos interesses dos rentistas (a elite financeira) em sobreposição aos interesses da maioria dos cidadãos europeus.
Portugal
Em 2014 Portugal comemorou os 40 anos da Revolução dos Cravos. Esta revolução ocorreu após o povo português se voltar contra o regime salazarista que estava no poder de forma ditatorial desde os anos 30 do século XX. No lugar das armas, cravos que eram depositados nos canos dos fuzis do Exército Português e muitos soldados mudaram de lado e aderiram às manifestações populares tornando aquele movimento pacífico, vitorioso. A Revolução dos Cravos é o símbolo da liberdade, sobretudo da sociedade portuguesa livre, popular e democrática.
No mesmo ano em que foi comemorado 40 anos da Revolução dos Cravos, Portugal estava sob um regime econômico imposto pelo Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional (a troika) que reduziu salários, aumentou impostos, causou demissões em massa e corte de programas sociais. Essas medidas representaram uma afronta externa à democracia portuguesa, conquistada há 40 anos e muito embora o povo não tenha sido o responsável pela crise, caberia a ele os maiores sacrifícios. Assim como há quarenta anos, o povo foi às ruas em defesa de sua liberdade e neste momento o inimigo não era mais o salazarismo, mas a troika. Em 12 de março de 2011, aproximadamente 100 mil pessoas tomaram as ruas de Lisboa. Os Protestos que se seguiram resultaram na demissão do Primeiro Ministro Português, José Sócrates.
A Crise e Dependência Econômica Portuguesa 
Em 2008 a crise financeira mundial, iniciada nos Estados Unidos, teve grande impacto na Zona do Euro. Em maio de 2011, O Governo Português pediu a União Europeia, Fundo Monetário Internacional e Banco Central Europeu, um resgate financeiro da ordem de 78 milhões de euros. A contrapartida imposta por estas instituições resultou na diminuição do seu déficit orçamentário em 2011, com reduções de salários e aumento de impostos. Essas medidas geraram aumento de custo de vida e desemprego que atingiu 15,4% da população ativa e recessão em torno de 3,1% para 2012. A falta de emprego em Portugal fez com que os brasileiros que haviam buscado melhores oportunidades profissionais em Portugal voltassem ao Brasil depois de uma ou duas décadas, também jovens portugueses estão atravessando o Atlântico em busca de emprego e segurança. (A crise financeira de Portugal In: rfi português 20/09/13)
A consequência da crise foi uma diminuição dos salários que ocorre em todos os grupos funcionais inclusive cargos de direção geral e administração (-4,94%) e nos postos comerciais e de vendas (-1,48%). De acordo com Tiago Borges, responsável pelos estudos de mercado da Mercer em Portugal, assiste-se no país “uma política muito conservadora relativamente aos incrementos salariais em toda a estrutura das empresas”. (COSTA, Gilberto. Crise econômica diminui salários em Portugal In: EBC.).
A sondagem conduzida em junho de 2013 pela “TNS Opinion” revelou que em relação ao funcionamento do sistema econômico, 92% dos portugueses entrevistados afirmaram que o sistema econômico beneficia apenas alguns. (Portugueses são os europeus que se consideram mais afetados pela crise económica, revela estudo. In SIC notícias 18.09.2013).
A vitória da esquerda na Grécia em 2014
Em 2014 a vitória da esquerda nas eleições gregas foi um sinal claro do povo grego de que não aceita o regime de arrocho imposto pela troika. A vitória do Syriza é maiúscula, pois representa o retorno do jogo democrático na Europa, após um período em que Alemanha e França, sob o pretexto da crise, impuseram um regime de arrocho, chamada convenientemente pela mídia brasileira de medidas de “austeridade” e que na prática significa o desemprego (que atinge um quarto da população grega), o salário mínimo valendo um terço do seu valor original e as pessoas com a sua eletricidade cortada e o acesso a itens médicos básicos e os Direitos Trabalhistas negados. Foi esta população que deu vitória ao Syriza. Sobretudo àqueles que votaram a vida inteira na Nova Democracia do Primeiro-Ministro Antonis Samarras.
Como o periódico britânico The Guardian relatou: Sophia Tzergou, uma lojista aposentada afirmou que votaria na esquerda pela primeira vez em sua vida. “Eu tenho 66 anos e votei na Nova Democracia toda a minha vida, assim como meus pais fizeram antes de mim”, ela disse. “Agora eu, meu marido e nossas duas filhas estão apoiando o Syriza. Não existe outra saída. Aqueles que estão se segurando no poder têm de ir embora, eles tiraram tudo de nós. Não temos mais nada para entregar”.
(Grécia: vitória do Syriza, vitória da esperançaIn Revista Fórum 25.01.2015.).
A Coligação da Esquerda Radical (em grego: Συνασπισμός Ριζοσπαστικής Αριστεράς, Synaspismós Rizospastikís Aristerás, abreviado SYRIZA) é um partido político de esquerda na Grécia. Foi fundado em 2004 como uma aliança eleitoral de 13 partidos e organizações de esquerda, sendo a componente principal o partido Synaspismós (SYN – Coligação de Movimentos de esquerda e movimentos ecológicos). O SYRIZA defende o aumento dos impostos para os contribuintes com mais rendimentos, o adiamento ou anulação dos pagamentos da dívida, cortes nos gastos da defesa e um aumento do salário mínimo e das pensões.
Em 2011 Alemanha e Itália intervieram na soberania grega ao pressionar decisivamente para a não realização de um plebiscito sobre as medidas do governo frente à crise. Em 2011, o então Primeiro Ministro da Grécia, George Papandreou, propôs um Plebiscito para que a população grega decidisse se aceitava ou não as medidas propostas pelos líderes da União Européia, medidas tais como demissões em massa, cortes de gastos sociais, privatizações em nome de uma dieta que levasse à superação da crise. O povo arcaria com o ônus de uma crise gerada inicialmente pelos círculos financeiros europeus. Logo a Grécia, o berço da Democracia Ocidental.
Segundo as declarações de Alexis Tsipras, líder do Syriza (partido grego de esquerda vitorioso nas eleições de 2014). O novo governo partirá para negociações com um perdão de uma parte substancial da dívida ou a negociação de seu pagamento sobre uma base realista que visa tornar a dívida sustentável, através do crescimento e com medidas que não prejudiquem os povos europeus (AMARAL, 2015).
As reações à vitória do Syriza.
A direita europeia lamentou a vitória do partido Syriza na Grécia. O porta-voz da primeira ministra alemã Angela Merkel afirmou: Para nós é importante que as medidas do novo Governo visem o prosseguimento da retoma econômica da Grécia, o que implica que os compromissos assumidos sejam respeitados. O democrata-cristão Manfred Weber, líder do PPE, grupo dos partidos conservadores no Parlamento Europeu, pronunciou-se na mesma linha. Os contribuintes europeus não estarão dispostos a pagar pelas vãs promessas de Tsipras. O presidente do Banco Central Alemão, Jens Weidmann alertou o Syriza para não fazer promessas ilusórias e ainda afirmou que Atenas continua a ser beneficiária de um programa de ajuda, isto implica que os compromissos devem ser respeitados, também Markus Kerber, líder da Federação Alemã da Indústria, declarou que a Grécia fez “progressos na via das reformas” e “seria catastrófico parar a meio caminho”. (ROCHA, 02/02/2015).
O deputado Antonio Felipe do Partido Comunista Português afirmou querenegociação da dívida é uma exigência incontornável e que Portugal não deve insistir, pois persistir na sua negação é insistir na política que tem conduzido Portugal à situação dramática em que se encontra, assim defendeu a esquerda grega que chega ao poder. Aproveitou para criticar o primeiro-ministro português em sua reação aos resultados das eleições na Grécia por demonstraro desprezo pela vontade popular e para o deputado este é um sinal de preocupação, pois já antevê sua futura derrota.
Considerações finais
A democracia para os liberais existe apenas quando é vantajosa para seus interesses, porém em tempos de recessão o povo não pode opinar e atuar de forma decisiva sobre as medidas adotadas pelos governos e que afetarão suas vidas. Existe uma reação imediata do aparato econômico contra a voz do povo que pagará, ao final, a conta, resultado de uma supervalorização artificial das ações, resultado do fracasso na gestão do sistema financeiro. A vitória do Syriza na Grécia é apenas o começo de uma oposição cada vez mais frequente às imposições do Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional sobre os países periféricos da Zona do Euro como Portugal e Grécia.
A vitória do Syriza na Grécia representa a retomada da democracia europeia que foi eclipsada pela crise. A partir desta vitória teremos a negociação, o contraponto, sobretudo a discussão de outra saída que não seja o arrocho social. O arrocho representa uma saída unilateral, apenas assegura os ganhos de uma elite econômica em detrimento da maioria. As medidas impostas pelatroika representam um hiato democrático.
A realidade estabelecerá até onde poderão ir as medidas antiarrocho do governo de esquerda grego e também os limites das imposições da troika. Este é o teste importante para a Europa, pois dependerá de uma negociação, algo muito diferente do que estava ocorrendo, ou seja, uma adoção pura e simples da dieta imposta pela troika. A história colocou nas mãos da Europa outra oportunidade para a democracia e seria muito importante não subestimá-la tão pouco ignorá-la. O povo grego está falando democraticamente e seu eco está sendo escutado por toda a Europa e este poderá ser um procedimento cada vez mais comum entre aqueles países que nada tem a perder.

Referências

Samuel de Jesus é docente da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS (Samueldj36@yahoo.com.br)

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