Apontamentos sobre o livro: "O Estado Militar na América #Latina": as elites entre Allende e Dilma.

Segundo Rouquié (1984) podemos observar na História do Brasil Republicano a presença de um Poder Militar Moderador, ou seja, um poder que segundo os militares brasileiros conservaria a “ordem” e garantiria o “progresso”. Esse Poder Moderador Militar pode ser constatado nas seis intervenções militares que corresponde aos anos de 1937, 1945, 1954, 1955, 1961 e 1964. Dessas, três resultaram em tomada do poder (1937, 1945 e 1964). Este fato indica um sistema civil com fortes componentes marciais, possibilitada pela atitude de partidos e forças políticas civis que prolongam suas ações junto aos exércitos, quase de forma institucionalizada, ou seja, recorrem às forças armadas para a manutenção do Status Quo. 
Foi o caso da UDN, que era chamada frequentemente de UDN militar e que teve um papel decisivo na pressão política que levou ao suicídio de Vargas e ao Golpe Civil e Militar de 1964. A essa lógica Rouquié (1984) denominou lógica pretoriana que é a obtenção de apoio militar por partidos e grupos políticos cujo objetivo é o de amplificar seu poder. No caso do Brasil existe uma relação muito importante entre o Estado e as Forças Armadas Brasileiras. A burocracia estatal militar sempre teve no Brasil um alto nível de autonomia. A continuidade política sempre ocorreu através de intervenções militares periódicas.

Dessa forma, as oposições cultivam hoje, como ontem, dependências militares, tanto para aumentar seu poder, como para afastar as autoridades do momento, e os sucessivos governos procuram obter uma legitimidade que parece ser decisiva. Os militares por seu lado selam alianças com os partidos (ou com os sindicatos), às vezes simplesmente para satisfazer ambições pessoais, mas na maioria das vezes para reforçar uma tendência ou clã contra seus adversários institucionais. (ROUQUIÉ, 1984, p. 325).

As ambições pessoais de um Pinochet no Chile, Stroessner no Paraguai, Castelo Branco, no Brasil e Jorge Videla, na Argentina, foram, sem dúvida, uma motivação a mais para a manutenção do seu grupo de sustentação no poder. Por outro lado as Forças Armadas não são um monolito, assim como Hector Saint Pierre (1993) destacou a existência da CEA e CEO, ou seja, o primeiro; o núcleo progressista e alternativo das FFAA e o segundo, o grupo dos duros, também chamado; Concepção Estratégia Oficial. Estes dois grupos militares distintos se alternavam no poder durante a Ditadura Militar (1964-1985) e perduram ainda hoje. *

Argentina e Chile
No caso argentino, a especificidade da sociedade argentina devia-se e ainda se deve, sobretudo, a existência de um grupo dominante nacional relativamente homogêneo que detém o prestígio e domina a economia. O exclusivismo de uma minoria, sobretudo a predominância setorial da grande burguesia social é garantida através de um acesso exclusivo ao Estado. Essa burguesia é capaz de colocar obstáculos à hegemonia social de qualquer grupo que pretenda se tornar dominante. É no âmbito das alianças setoriais que advém o equilíbrio entre esses grupos, no entanto esse relativo equilíbrio impede a sua hegemonia política.
Embora essa elite econômica não possua a hegemonia política, ela tem poder de veto econômico capaz de fazer qualquer governo perder sua legitimidade. Esses grupos sociais elitistas devem tudo ao Estado argentino, pois no século XIX receberam dele propriedades e benesses como operações comerciais vantajosas e transferências de recursos. Segundo Rouquié (1984), um sistema político que goza de pouca autonomia e a implantação de um grupo dominante como este são as condições favoráveis que podem levar a uma situação pretoriana, ou seja, de interferência militar na vida política de uma nação.
As Forças Armadas Argentinas, muito embora, não operassem sobre as ordens de nenhum grupo entre as camadas dominantes, representaram um óbice ao avanço das camadas sociais frente ao Estado.

Na Argentina, o exército também não é nem o partido das classes médias, nem o protetor da burguesia industrial, nem a ponta de lança da grande burguesia agrária ou das sociedades multinacionais. Suas intervenções modificam a direção das transferências entre setores e desempenham o papel de inversor das correntes sociais. (ROUQUIÉ, 1984).

No caso do Chile dos anos 30, a estabilidade política era resultado de um complexo e moderno sistema partidário. Esse sistema congregava também forças revolucionárias e anticapitalistas. Era possível a existência desses grupos devido ao caráter precoce da formação de um Estado centralizado no Chile, sobretudo a ausência de fenômenos políticos como o Caudilhismo.
A Guerra do Pacífico também contribuiu decisivamente, pois a anexação de ricas províncias do norte consolidou uma relativa unidade nacional, o que possibilitou uma dissociação entre poder político e econômico fazendo também com que o sistema representativo ganhasse autonomia. Contudo nos anos 60, o governo de Eduardo Frei abalou o sistema político ao apoiar novos setores sociais excluídos do jogo político e da vida social, procurou reformar as estruturas econômicas arcaicas. Quando Allende e a Unidade Popular chegaram ao poder em 1970 o sistema se encontrava impactado pela crise de hegemonia iniciada no governo Frei e, em 1964 ocasionou uma ruptura entre as classes dominantes tradicionais e a burguesia moderna.
Frei procurou reformar as estruturas econômicas arcaicas, empenhou-se, sobretudo em integrar uma camada marginalizada à política e sociedade chilena, assim formou conselhos populares, aprovou uma lei de Reforma Agrária. Ao incorporar a reivindicação dos campones liberou forças que posteriormente o sistema não teria condições de controlar pela via democrática. Segundo Rouquié (1984, p. 274). Abrindo a Caixa de Pandora da participação dos excluídos, Frei rompeu com o “pacto social implícito” sobre o qual repousa a democracia chilena. Frente a um quadro de emergência dos setores marginalizados, é desenvolvida pela a direita uma nova ideologia antidemocrática que designa ao Exército relativa autonomia para repelir aquilo consideravam um “perigo”.  Após o Tacnazo, uma espécie de greve militar contra a degradação do orçamento militar e dos soldos considerados irrisórios passa a ser questionada a sua submissão à constituição e a neutralidade militar. Soma-se a isso o fato dos novos comandantes das unidades militares chilenas possuírem uma orientação estratégica antissubversiva.
No caso do contexto chileno dos anos 70, Allende é um símbolo de socialismo pela via institucional. O Chile já tinha experimentado um governo progressista liberal e tudo indicava que Allende representaria um desenvolvimento desta opção Chilena. Certamente o governo Allende representou a ruptura de um consenso que levou a perda do controle político pela elite chilena que recorreu à caserna para o restabelecimento do Status Quo. 

 Allende e Dilma: semelhanças históricas.

A previsão de vitória da presidente Dilma Rousseff em 2014 gerou tensões entre amplos setores da elite brasileira, principalmente a elite liberal obediente aos cânones do Consenso de Washington e o setor de comunicação que não consegue reproduzir seu poder (constituído em aparato midiático) em benesses e predomínio político e social. Esses setores alijados do poder geram tensões com o objetivo de criar fissuras institucionais que permitam compartilhamento ou até mesmo domínio da máquina dirigente. 
No caso da mídia chilena de 1973 lembra muito a campanha de setores hegemônicos da mídia brasileira contra o governo Dilma. ROUQUIÉ (1984, p. 290, 291), afirma que a hábil propaganda da imprensa "burguesa" cobria suas primeiras páginas com os excessos cometidos pelo MIR e que eram relacionados ao governo, assim a mídia esforçava-se para criar a imagem da desordem econômica e social. O mês de junho de 2013, no Brasil, foi marcado pelas grandes manifestações populares que passou a rejeitar os políticos e a estrutura política. A mídia conseguiu transferir a grande parte destas insatisfações ao Governo Dilma, muito embora o movimento fosse contra todos os governos em âmbito municipal, estadual e também federal. Pediam os manifestantes hospitais "padrão FIFA". Uma crítica contundente aos gastos federais com a Copa do Mundo do Brasil.
Alguns grupos tentaram jogar um jogo perigoso e de resultados imprevisíveis. Tal jogo é o mesmo tentado por uma elite política que, no início dos anos 60, não admitia a chegada de João Goulart ao poder e assim apoiaram o Golpe Civil-Militar de 1964. Entre esses opositores estavam nomes proeminentes da democracia brasileira como Juscelino Kubitschek, Ulisses Guimarães e Sobral Pinto. Como todos sabemos o endurecimento do Regime com o Ato Institucional n° 01 suspendeu seus direitos políticos e levou-os ao exílio.
O governo Dilma reuniu um espectro amplo de partidos e isso exige abertura de concessões e pactos. Podemos observar este fato na quantidade de ministérios do Governo Dilma que é obrigado a operar como um grande guarda chuva político para ter sustentação política no Congresso Nacional. Esses compromissos mostram a nossas raízes clientelistas, calcada ainda no compadrio e na cordialidade observada por Sérgio Buarque de Holanda (1995).
 A impossibilidade de atender a essa grande demanda política acaba sempre por gerar dissabores políticos. Na conjuntura brasileira atual, uma grande e permanente oposição parlamentar deixaria o governo sem apoio, o que levaria o Governo Federal ao isolamento e a uma crise institucional. Atualmente, partidos de oposição como o PSDB e seus agregados políticos apostam nisto, parte considerável da base aliada começou, no início de 2014, achar um bom negócio à oposição ao governo. 
Observando a recente conjuntura política em que se encontrava o Governo Dilma (2011-2014) podemos afirmar que suas alianças em 2010 afetavam a sua governabilidade em 2014, principalmente a composição com o faminto PMDB, o partido mais fisiológico da República brasileira. Seu apetite sempre foi capaz de gerar grandes desobediências a qualquer governo. 
Um governo politicamente instável ou fraco oferece o pior dos mundos aos seus cidadãos.  O Caso Allende no Chile em 1973 é um grande exemplo de um governo que caiu por não ter um leque de alianças e por estar isolado. 
A Unidade Popular, que detém o governo, mas não o poder, visto que a Câmara, o aparato judiciário e uma boa parte da administração lhes são hostis, saberá pagar o preço das boas relações com os militares. (ROUQUIÉ, 1984, p. 288).

 Sobre o fato do isolamento do governo socialista de Allende não deve ficar somente na conta da burguesia, sobretudo foi a divisão interna dos socialistas e sua rejeição em buscar alianças como, por exemplo, com a Democracia Cristã que os levaram a um impasse institucional.

O Partido Socialista, partido do presidente, assim como o MIR não queriam a preço nenhum uma aliança com a burguesia nacional através da democracia cristã. Sua estratégia e, inclusive oficialmente a expansão do programa da U.P. (ROUQUIÉ, 1984, p. 289-290).

A posição "puritana" do Partido Socialista Chileno e a adoção da ideia de formação de uma "Ditadura Popular", assim como a destruição do "Estado Burguês" (o que seria conseguida por meio de uma guerra civil), arregimentou uma aliança entre as classes médias e a burguesia para repelir a "ameaça" socialista. O Governo Allende sofreu um golpe brutal e mergulhou o Chile em uma longa e sangrenta ditadura.

Os partidários de uma "Ditadura Popular" que pediam a destruição de um Estado Burguês, e, dessa forma, minavam os fundamentos do governo socialista, teve um peso muito grande em toda essa história. Aqueles que no próprio seio da coalização governamental, anunciavam como inevitável uma confrontação e clamavam por uma guerra civil, criando irrisóriamente cordões de autodefesa indistrial (as cordones) que desmoronarão sem combate a 11 de setembro, sem dúvida contribuíram para as atemorizadas classes médias fossem oferecidas pela direita em uma bandeja. (ROUQUIÉ, 1984, p. 290, 291).

A questão proposta apresentam os limites impostos ao avanço das forças democráticas. São grandes imposições. No caso do Brasil deve-se considerar o Congresso Nacional que possui frentes parlamentares como a do agronegócio, a ruralista, a religiosa, da bala, essa última faz referência aos parlamentares que apoiam a comercialização de armas de fogo no Brasil. Todos estes são grupos parlamentares bem articulados e que ameaçam a qualquer hora o trancamento de pauta para protelar a aprovação de projetos de interesse do governo, caso suas grandes demandas não sejam atendidas. Essa equação política não parece tão simples. Este fato impõe limites à ação do governo. Parece impossível que partindo dessa estrutura política, apoiada no Congresso Nacional, um governo faça o que quiser e da maneira como quiser. O avanço das forças democráticas é revestido de complexidades e que ocorre de forma lenta e gradual.
Sobretudo não existe a possibilidade de adesão completa do país a uma intervenção militar, pois o governo Dilma é um governo dentro da ordem, inclusive internacional, assim suas ações, embora muitas vezes ousadas na área externa, figuram no espectro da ordem dada e consolidada. Porém os rumores de ruptura da ordem institucional nos demonstram a oposição de setores sociais que se sentem marginalizados. O mais importante é a atenção em relação ao tamanho desses setores e sua capacidade de abrir brechas autoritárias definitivas e que poderão nos surpreender como em 1964.



Considerações finais

As ditaduras militares representam um triste capítulo da história latino-americana, afinal representou um retrocesso democrático. No Brasil mesmo após 50 anos ainda estamos buscando respostas. A Comissão Nacional da Verdade já elucidou alguns casos ao reunir documentação mantida em sigilo pelos militares, assim como na Argentina onde o processo está mais avançado que no Brasil, o que comprova isso são condenações e prisões como a do ex-presidente da Argentina, General Videla, assim como muitos responsáveis pelos mortos e desaparecidos durante a ditadura Argentina.
Ao entendermos quais as condicionantes históricas que permitiram o surgimento das ditaduras militares, percebemos que é válido questionar se a mesma conjuntura histórica não está se reconfigurando ao ponto de permitir atualmente incursões militares sobre a democracia? O jogo dos partidos de oposição, setores radicais pedindo intervenção militar e a oposição da mídia que tenta criar a imagem da desordem econômica. Esse é o objetivo deste presente artigo, ou seja, refletir por meio da leitura do clássico O Estado Militar na América Latina.
Evidentemente que a conjuntura atual é muito diferente, pois o período autoritário, conduzido pelos militares, trouxe muitos desgastes à instituição militar que busca hoje restabelecer confianças dos setores civis. Nós também não estamos em um contexto semelhante ao da Guerra Fria. Sobretudo, existe uma rejeição na América Latina aos governos autoritários ou ditatoriais. O que constatamos é que, pelo menos em parte, essas condicionantes (que poderiam levar a um golpe) existem, mas não encontrarão respaldo para levar o país a uma intervenção militar. De qualquer maneira é preciso atenção em relação a essas forças adversas que pretendem atentar contra a estabilidade política do Brasil, afinal, subestimá-las poderia ser um grande erro.

            
Bibliografia

CARVALHO, Jose Murilo. Cidadania no Brasil – o longo caminho. 3. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 2 vol. 4 ed. Porto Alegre: Globo, 1977. 

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1995. 

ROUQUIÉ, A. O Estado militar na América Latina. Rio de Janeiro: Alfa-Ômega, 1984.

SAINT-PIERRE, Héctor Luis. Racionalidade e Estratégia. In: Premissas. Campinas: NEE/UNICAMP. Vol. 3, abr. 1993. 


Sobre o autor: Samuel de Jesus é Doutor em Ciências Sociais e docente da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul - campus de Coxim.



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