O Coronel Esperidião Lima Albuquerque não era como todos os coronéis,
dentre seus feitos era preciso destacar a derrota do Umuarama, um
monstrengo que mantinha ali preso na fazenda. O coronel era um dos seres
mitológicos do lugar, uma espécie de Ulisses da Odisseia. Aos
domingos ia a igreja, mas o padre não se sentia a vontade com a sua
presença, pois o achava um homem que deveria ter um pacto com o
demo. O padre recusava-se ir a fazenda ver o Umuarama, era contra seus
princípios religiosos. Considerava o coronel Esperidião pior que o
demônio, pois conseguiu aprisionar o belzebu, mas Esperidião era um
homem católico praticamente fervoroso.
Em uma tarde estava o coronel a tirar os bichos do pé e bem
longe, lá no horizonte viu muita poeira, um redemoinho, então não deu
muita atenção, mas perto, o redemoinho assumiu proporções assustadoras.
Percebeu que o redemoinho rosnava e começou a se perguntar como poderia
um redemoinho rosnar? Imediatamente pegou o seu trabucão, mirou bem nas
fuças daquele furacão e disparou. Sentiu que tinha atingido o safado na
primeira tentativa e quando a poeira baixou foi lá para averiguar.
Quando chegou perto é que se deu conta do tamanho daquele monstrengão.
Fincou umas estacas no chão e amarrou aquela fera. Sempre mostrava às
visitas o Umuarama. Com uma rapidez impressionante o feito do coronel
era sabido naquelas e noutras bandas.
Num certo dia São Geromão topou com o Umuarama e colocou em
sua frente para proteção o estandarte de São João que havia de
proteger-lhe daquela aparição e pense leitor como ficaria as vozes que
habitavam aquela cabeça do santo maltrapilho? uma dizia para que
corresse dali, e a outra pedia misericórdia e a terceira pedia perdão ao
senhor. Quando
a ferrovia deitou suas raízes era dia de segunda. Acordaram o coronel
com barulhos de martelos que pregavam as dormentes, tudo fora muito
rápido, abriu a janela e não podia acreditar. Na linha do horizonte,
onde o sol se punha, encontravam-se duas linhas paralelas de ferro que
os homens colocaram. Imediatamente fora ali saber. Perguntou para o
rapaz o que havia de ser aquilo. O jovem esbaforido respondeu que
aquelas linhas eram as linhas mestras do progresso.
Noutro dia, bem de manhãzinha a terra
estremecia, parecia um trovão e estremeceu tudo. O coronel caiu da cama e
imaginou que o dia do juízo finalmente havia chegado. O medo de pecador tomou
seu coração e desesperado já esperava ver os anjos do apocalipse tocando suas
trombetas, mas o que viu de sua janela foi uma coisa grande e metálica que
soltava fogo pelas ventas. Percorria as linhas ligeiramente, feito um animal
poderoso. Quando parou viu que um homem saiu do bichão e imaginou que esse
homem tinha realizado feito parecido ao seu que foi a prisão do Umuarama. Dona Clélia era esposa do coronel
Esperidião e já estava acostumada com as suas esquisitices. Foi testemunha de
muitas das bravuras do famigerado coronel, mas ainda se perguntava como aquele
raio de homem poderia atrair tantas estranhezas, poderia ser a genética dele ou
sua envergadura a bastião, os problemas é que quanto mais revirava aquele homem
mais sarna encontrava para se coçar.
Certa vez o coronel
saíra cedo com o índio Juruna dos Terenas e ficou por lá quase cinco dias
aprendendo muitas das habilidades dos selvagens, passou a concordar com o seu
modo de ver a vida. Teve o corpo pintado e carregava na cabeça um chapéu e um
colar de raras sementes. Dona Clélia conhecia Esperidião desde os seus quinze
anos. Era uma menina que não entendia nada. O coronel já era homem feito e já
sabia muitas coisas desse velho mundo. Falava para ela das cidades grandes e
como era diferente a vida lá, pois não tinha a poeira da terra e nem o leite da
vaca, mas do saquinho. Falava também dos automóveis que circulavam velozmente
pelas vias de asfalto. Ela escutava tudo e ficava sempre muito impressionada.
Ele sempre tinha a resposta para as suas perguntas. Sentia-se segura com ele
que era para ela tão garboso, galante e inteligente. Casar com ele era um
desejo que nutriu por alguns anos e quando finalmente se casaram sentia-se
realizada na vida. Com o tempo ela ficou a par de suas manias. Parece que não,
mas bem rapidinho se passaram 40 anos e tantas coisas viveram nesse tempão,
vacas gordas e magras, sol e tempestades, guerra e paz e as sereias.
As terras à margem esquerda da
linha do trem eram do coronel. No outro lado foram construídas as casas
que
abrigavam os funcionários da ferrovia. Logo fora construída uma estação
ferroviária e outras casinhas na margem direita da linha
férrea e muito rapidamente já se amontoavam chegando ao ponto de formar
uma
vilinha. Com o tempo parecia a um formigueiro que ia aumentando noite e
dia e
não demorou muito para o coronel colocar uma cerca por ali, do lado
esquerdo da
linha férrea. Ele sempre podia ver o trem parando na estação que dava de
frente
para a sua janela. Duas vezes ao dia o trem chegava à estação e seu
apito era
ensurdecedor, o primeiro era ao meio dia e o segundo era às dez horas da
noite.
Esse horário da noite fazia o coronel ir dormir muito tarde, pois seu
som era escutado de longe e demorava muito para seu barulho desaparecer
por
completo.
Dois anos se passou rapidinho e já
tínhamos do lado direito da linha férrea uma pequena cidade. Nesse tempo o
coronel andava dia e noite armado, seu rifle winchester velha amiga, pois não
se sentia mais seguro ali. No terceiro ano começaram as fábricas que soltavam
fumaça das chaminés. Homens com horário de entrada e saída. Passou a existir
por ali crimes sem solução e carros que trafegavam pela avenida principal. Com
o tempo tudo cresceu e prosperou na margem direita da linha férrea. A fazenda
nesses tempos parecia uma barragem. Dois mundos. O mundo da margem esquerda e o
mundo da margem direita.
O Santo Geromão também via o
inferno ali. Resolveu lutar contra o diabólico que se avizinhava. Aquele
povaréu era um monstro mais perigoso que o Umuarama, pensava que o inferno
abriu uma de suas filiais ali, pois as tentações de todo o tipo de mundanidade
estavam na margem direita. São Geromão não sabia onde ficava a garganta daquele
monstro para transpassá-la com seu estandarte de São João que tinha uma seta
afiada em seu cume. Serviria também se encontrasse o coração da cidade para
atingi-la de morte.
No sertão não era mais escuro
como era antes. As luzes ao longe traziam o som das buzinas dos carros, das
fábricas que trabalhavam vinte e quatro horas por dia. Antes o luar do sertão
embalava o sono, agora não era possível nem vê-lo mais. Nem ao horizonte tinham
mais direito, pois os prédios impediam-no de ser visto. O horizonte agora era propriedade
privada. O por do sol na linha do horizonte é uma lembrança, apenas observarmos
o sol se por na linha dos edifícios. A insegurança começava
a estender as suas garras. Pulavam a cerca e invadiam os cafezais para fazer
Deus lá sabe o quê. Um dia colocaram fogo no canavial ao lado do cafezal. Foi
um fogo muito alto e que ameaçou a fazenda, mas os bombeiros depois de 24 horas
começaram a controlar o fogo. Depois dessa o coronel pensou na construção de um
muro de grande extensão. Na verdade o muro isolou o coronel Esperidião e Dona
Clélia. A fazenda, agora se parecia um castelo medieval com muros por todos os
lados.
São Geromão foi para a praça
pública e começou a bradar contra aquela Sodoma e Gomorra que deveria
perecer
no pecado. Segundo ele, Deus lançaria seus raios da decência que
colocariam tudo a
baixo. Aqueles ainda com fé ouviam suas profetizações mesmo com o padre
ameaçando excomungar quem desse ouvidos às suas sandices. Dizia Geromão
que o demônio de
ferro vindo do inferno trazia a perversão e a corrupção àquelas
cercanias e que
o fim estava próximo. Muitos acreditavam que as vozes ouvidas pelo santo
eram
de origem divina, certamente eram os anjos que falavam com ele, mas os
médicos
diriam racionalmente ser a mais pura esquizofrenia. Santo Geromão dizia
que os
tempos de ventania estavam chegando e que tudo aquilo era só o inicio,
pois estava chegando tempos difíceis e que somente os fortes ficariam de
pé frente à
sua força avassaladora.
Certo dia o coronel recebeu a visita
dos homens daquela cidade. Eram as autoridades e membros de uma empresa de
empreendimentos imobiliários. Falaram para ele sobre a importância do progresso
e a necessidade da cidade se expandir. Isso seria bom para todos, pois era a
democracia e um mundo novo que estavam acontecendo. Sua fazenda estava
impedindo que a cidade se expandisse na margem esquerda da estrada de ferro. O
coronel escutou tudo atentamente e falou muito pouco ou quase nada até aquele
momento, mas assim que os homens pararam de falar, levantou-se e olhou da janela,
lá bem longe, voltou e se sentou e começou a dizer em resposta que sua família
estava ali desde a época das capitanias hereditárias. Seu tetravô chamado
Serapião que expulso pela igreja de Portugal investira todo o seu dinheiro no
engenho. Encontrou Serapião, nas novas terras, bravos índios Aimorés, ele
encarou seus novos vizinhos com o seu mosquetão, fora Serapião que inicia o
massacre das populações indígenas, escravizou-os também.
Lamentavelmente seus três vizinhos
não fizeram o mesmo que Esperidião, o problema é que suas fazendas formavam um
cinturão, o que tornava a fazenda do valente coronel uma ilha no meio do
progresso. Sabia então que a cidade ia se expandir e o cercaria por todos os
lados. Como os gregos liderados por Agamenon que cercaram Tróia. Sabia que mais
cedo ou tarde a cidade o engoliria. Achava tudo aquilo um desagravo à sua
patente, não que tivesse sido militar, mas o título de coronel já não impunha
mais respeito havia um bom tempo, então ficou furioso. Pediu licença e saiu
para dentro da casa e quando voltou empunhava sua espingarda winchester. Os
homens ficaram assustados, então o coronel disse aos homens que eram muito
ousados e tinham muita sorte, pois há não muito tempo passaria fogo em todos eles
e arrancariam as suas orelhas. Assustados os homens saíram correndo e não se
sabe se registraram Boletim de Ocorrência na delegacia mais próxima.
Após o episódio o coronel
Esperidião não conseguia dormir direito. Nessas noites pegava um dos cobertores
e ficava na cadeira da varanda com a winchester no colo. O céu já não tinha
mais tantas estrelas e perguntava-se como tudo aquilo podia acontecer? Santo
Geromão Acordou pela manhã
envolto aos papelões que usou para combater o frio daquela noite e seu
companheiro,
o perdigueiro deveria estar ali. Queria voltar para o sertão, mas ele
estava
desaparecendo e não se habituava àquele novo modo de vida em meio ao
asfalto e
os prédios. As vozes de sua cabeça diziam que seria bom voltar, mas para
onde?
Perguntava ele. Sentia-se perdido no inferno e realmente poderia já
estar lá há
um bom tempo. Quando recobrou sua consciência em um certo dia frio
estava em um
lugar de paredes brancas, deitado na cama, mas em seguida aplicaram uma
nova
injeção e logo perdeu-se novamente. Era um sanatório para doentes
mentais e não
demorou para que, depois da fase das injeções, a pregar novamente,
agora, para os considerados loucos. Com ele ali o padre se sentiu mais
tranquilo,
pois sua paróquia não estava sendo mais dividida ao meio.
As sereias não paravam de
cantar. Elas estavam pedindo socorro e a única pessoa que poderia ajudar era o
coronel Esperidião, mas era complicado para o coronel, pois o único caso de
infidelidade em seu longo casamento com Dona Clélia foi o dia que ouviu o canto
da sereia naqueles tempos de sonambulismo. Eram três as sereias chamadas
terrenamente, a primeira, Estrela, tinha os cabelos loiros e seus olhos eram de
um azul profundo poderia facilmente levar qualquer homem à tentação, a segunda chamava-se
Lua, era ruiva de olhos verdes e seu corpo tinha uma cintura fina e atraente e
a terceira chamava-se Sol, era morena, olhos castanhos e de cabelos
longuíssimos. Os homens ficaram loucos para encontrar o lago das sereias, mas
as moças aquáticas versadas em encantos davam o caminho apenas ao merecedor. A
maioria invadira a fazenda nos tempos antigos, andavam..andavam e nada
encontravam, então muitos acharam que era apenas uma lenda e consideravam mentirosos
aqueles que disseram terem se encontrar com elas. O leitor poderá perguntar
como elas foram parar lá? A resposta é simples, houve um tempo em que o sertão
tinha virado mar, mas a seca, as transposições dos rios e todas as danuras que
fazem com o planeta transformaram o mar do sertão em um lago, mas até aí tudo
bem, pois era bonito o seu canto e com o tempo passaram a fazer parte das
lendas e dos encantamentos desse grande sertão, mas isso até agora, pois
começaram a jogar entulhos no lago, substâncias químicas e a saúde das sereias
não eram mais a mesma.
Dona Clélia sabia por que o
coronel não tinha ido saber o que ocorrera com as sereias. O coronel queria
pedir para ela, mas não tinha coragem, pois passado tanto tempo ainda tinha vergonha de
sua infidelidade. A cada dia o chamado delas era mais sonoro, carregava uma dor
profunda e foi aí que dona Clélia, atingida pela misericórdia, disse para o
coronel que deveriam ir saber o que ocorria, pois naqueles tempos não era
difícil de imaginar que era alguma diabrura daquele ninho de pessoas mal educadas,
grosseiras e insanas. Saíram dona Clélia e coronel Esperidião na madrugada e
quando chegaram l áencontraram as sereias muito debilitadas e doentes. Estrela
quase não podia falar, mas pediu socorro e pelo que entenderam elas só teriam
alguma chance de sobrevivência se chegassem ao mar, embora isso não fosse
garantia, pois o mar também estava poluído, mas suas chances seriam maiores.
Viveram por muito tempo naquele
lago sertanejo, conheciam tudo ali, não queriam ir para o mar, pois o
achavam insegura e para elas era mais fácil viver ali dentro de seu
pequeno mundo, o
mar era perigoso, cheio de variáveis e de coisas que elas não podiam
entender.
Ali só entenderiam as coisas do ponto vista de seu pequeno mundo. Quem
diria? O coronel imaginou que poderia
utilizar um caminhão pipa para levar as sereias para o mar e assim foi feito.
Na madrugada seguinte ele e dona Clélia colocaram as sereias no caminhão pipa e
foram pela estrada rumo ao litoral. Tudo certo no trajeto e já no mar as
sereias cantaram em sinal de agradecimento, parecia que se sentiam mais
fortalecidas, pois seu canto estava ainda mais alto. O coronel e dona Clélia as levou a praia de Ubatuba que sempre
estáava limpa e própria para o banho. Quando voltavam sentiam uma grande solidão,
um aperto no coração. Sentiam que seu mundo estava cada vez mais vazio e
imaginou que Umuarama pudesse estar sofrendo algum tipo de depredação, já
pensava em se despedir do bichão que já domesticado. O sertão se desencantara rapidamente.
Em 1929 irrompeu uma crise
mundial, os títulos supervalorizados artificialmente resultaram no
quebra-quebra generalizado na economia do mundo. No Brasil o preço do café
despencou, foi à bancarrota dos barões do café como Esperidião. O café minguou
no pé sem ter sido colhido. A fazenda que era cheia de gente na época da
colheita estava deserta, assim como seus criados. Todos foram embora!! A cidade os cercavam devido ao impulso industrial. O coronel e dona
Clélia ficariam por ali. Em uma dessas noites solitárias, o coronel
foi ao quintal e soltou Umuarama, bicho que ele já era de estimação, mas que
não era dali. Pensou o que era manter o bichão ali em um lugar
estranho. Como seu mundo estava acabando o coronel ficou sensibilizado e imaginava como era estar em
um mundo estranho e que não é o seu. Achava Umuarama até humilde, pois deixou
ser domesticado, mas era o momento de soltá-lo para voltar o seu lugar, onde
quer que fosse. Certamente não foi decisão fácil, pois o Umuarama representava
sua valentia e fizera outrora, dele, uma figura legendária, pois afinal quem
agora lhe dava os méritos? Todos esquecerem essa história, a história de quando
o coronel Esperidião aprisionou o Umuarama. O bichão quando solto olhou para
trás algumas vezes, mas seguiu seu caminho. Lá nos limites da fazenda virou um
redemoinho e nem deixou seu rastro. Naquele dia foi dormir tarde da noite,
deitou na cama e abraçou dona Clélia como há muito tempo não fazia, então os
dois adormeceram, pois era o fim de seu tempo.
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